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This blog is a compilation of thoughts on things I've been learning.

Sunday, October 21, 2007

A cineasta e o filósofo: Maya Deren e José Gil

Uma análise de “A study in choreography for camera” a partir de José Gil e “O corpo paradoxal”
(vide clip no final desta postagem)

“A Study in Choreography for Camera”, obra curta e experimental da cineasta Maya Deren combinando dança e vídeo, é um estudo fundamental para compreendermos a trajetória percorrida pelos registros de dança (desde os desenhos e litogravuras, passando pela fotografia e pela dança no cinema) até o estabelecimento do gênero videodança. Muitos são os méritos dessa obra. Realizada em 1945, reflete valores de uma época em que a dança, legitimando-se enquanto categoria artística, libertou-se da subordinação à música (daí a ausência de trilha sonora), e em que o corpo, veículo da dança, encontrava uma ressignificação nas esferas científicas, artísticas e sociais.
Maya Deren experimentou maneiras de fazer o filme falar sobre a dança, e suas soluções obtiveram resultados de maior alcance, talvez, do que ela própria tenha suspeitado. Abolindo quase que totalmente a frontalidade (essa condição só se estabelece no plano dos giros de cabeça), a dança mostrada não é feita para um espectador: o bailarino dança para si mesmo.
A combinação dos elementos de dança com os elementos de vídeo neste estudo resulta em uma montagem instigante; a cineasta elabora uma série de imagens provocativas em relação ao espaço onde o corpo está dançando. Os movimentos têm continuidade, mas o espaço se modifica. O que à primeira vista parece uma brincadeira divertida com as possibilidades de manipulação da imagem desdobra-se em questões que sugerem maior elaboração. Será que o plano panorâmico inicial, que reencontra o bailarino em quatro diferentes pontos da mesma mata, propõe uma ubiqüidade do ser dançante? Como entender os espaços abertos e fechados que se alternam, ligados apenas pela dança? O bailarino está dançando em todos esses lugares ou em lugar algum? A obra estará falando das sensações do corpo que dança?
Intencionalmente ou não, Maya Deren realizou um manifesto filosófico sobre a dança em forma de vídeo.

O corpo paradoxal

Sabe-se que o bailarino evolui num espaço próprio, diferente do espaço objetivo. Não se desloca no espaço, segrega, cria o espaço com o seu movimento. (GIL, 2004, p. 47)
É dessa forma que o filósofo português José Gil inicia o texto “O corpo paradoxal ”, onde introduz o conceito de espaço do corpo. Este espaço não é propriedade exclusiva do bailarino, sendo criado em situações de performance corporal (atores, esportistas, xamãs) e em qualquer situação onde ocorre investimento afetivo do corpo. Nessas situações, dá-se um efeito de prolongamento ou ampliação do espaço que rodeia o corpo, constituindo a ocupação de um novo espaço: o espaço do corpo. A partir da sua substância limítrofe, a pele, o corpo objetivo cria uma dilatação ou continuidade, como se o ar ou o espaço se recobrissem de “um invólucro semelhante à pele: o espaço do corpo é a pele que se prolonga no espaço, a pele tornada espaço”. (GIL, 2004, p. 47)
A formação desse espaço pode ser facilmente percebida quando utilizamos uma ferramenta ou quando dirigimos qualquer tipo de veículo. A pessoa que trabalha com uma câmera de filmagem, por exemplo, age como se seus limites corporais se ampliassem até a extensão da câmera, e passa a cuidar desse espaço prolongado que a câmera ocupa como se pertencesse ao seu próprio corpo. Também quando transportamos um objeto longo como uma escada, criamos um novo corpo virtual cuja forma ocupa contornos diferentes dos que habitualmente preenchemos. Se a escada bate em um obstáculo, às vezes reagimos como se tivéssemos golpeado nosso próprio corpo, podendo chegar a reproduzir sons ou expressões faciais como uma representação de dor (ainda que seja apenas uma dor moral – uma espécie de culpa por termos descuidado do nosso espaço do corpo).
No caso do bailarino, esse espaço é forjado sem a presença de outros objetos. Representado às vezes por uma esfera que circunda o corpo, e conceituado por Laban na forma de um icosaedro, o espaço do corpo é uma experiência real para o bailarino, “que se sente evoluir dentro de uma espécie de invólucro que suporta o movimento” (GIL, 2004, p. 48). Dentro desse espaço, o corpo se move sem enfrentar obstáculos e sem estar submetido a direções ou pontos de referência já fixados no espaço objetivo. Novos referentes são criados pelo corpo em seu interior, fazendo com que as direções exteriores submetam-se a eles, e não o contrário.
Para Gil, no espaço do corpo o bailarino multiplica-se em muitos corpos virtuais dentro de um meio que possibilita a maior fluência de movimentos. Ali ele sente-se dançar; acompanha o movimento de seu corpo contemplando-se a partir desses múltiplos pontos de vista que não estão apenas em seu espaço interior e também não estão no espaço objetivo. O espaço do corpo, composto de um “exterior intensivo”, possibilita essa percepção distendida do espaço (e do tempo) que o bailarino tem ao dançar.

O espaço do corpo em Maya Deren

As idéias de José Gil propiciam a realização de um aprofundamento da leitura das imagens criadas por Maya Deren. Os jogos espaciais propostos pela diretora encontram, nas palavras do filósofo, uma coerência que amplia a gama de significados da obra e enriquece a reflexão sobre o conhecimento em dança.
Para estruturar uma análise, podemos agrupar as seqüências de “A Study...” na conformação de quatro principais idéias experimentais propostas pela cineasta. Cada uma dessas idéias tem características próprias, mas todas elas discutem algum aspecto da relação do bailarino com o espaço do corpo criado pela dança.
A primeira idéia está contida na tomada panorâmica realizada em um ambiente externo cheio de árvores. O espaço é mostrado pela câmera como sendo uma unidade; porém, o aparecimento do mesmo bailarino em quatro pontos diferentes desse espaço contínuo introduz um elemento que abala a concepção ordinária que se tem sobre a presença de um corpo no espaço.
Segundo Gil, “um corpo isolado que começa a dançar povoa progressivamente o espaço de uma multiplicidade de corpos” (2004, p. 52). A multiplicação de corpos virtuais percebida pelo bailarino no espaço do corpo é assim revelada por meio de um engenhoso recurso de montagem visual. O corpo começa a mover-se e desdobrar-se em outros pontos de vista; o espaço do corpo começa a diferenciar-se do espaço exterior. Já a partir daqui começa a perder importância a concretude do espaço objetivo, pois o assunto passa a ser a dança que acontece dentro desse espaço do corpo.
A segunda idéia desenvolve-se a partir dessa mesma seqüência. A unidade espacial é quebrada, estabelecendo-se uma nova forma de unidade pela não interrupção da continuidade dos movimentos através de diferentes espaços.

Vários outros aspectos paradoxais do espaço do corpo manifestam-se claramente nos movimentos do bailarino: a ausência de limites internos enquanto, visto do exterior, é um espaço finito; o fato de a sua dimensão primeira ser a profundidade, uma profundidade topológica, não-perspectivista, de tal modo que misturando-se com o espaço objetivo, é suscetível de se dilatar, de se encolher, de se torcer, de se dispersar, de se abrir em folheados ou de se reunir num ponto único. (GIL, 2004, p. 52-53)
Da mata inicial, o bailarino passa a ser visto dançando dentro de uma sala e, a seguir, em um pátio. O espaço objetivo se encolhe e se alarga, mas nenhuma dessas condições parece afetar a amplitude da movimentação do bailarino. Percebe-se, no entanto, uma variação temporal: o ritmo é mais denso no espaço fechado, e acelerado no pátio. Essa seqüência corrobora com a idéia de que o filme não está falando do lugar objetivo em que esse corpo se encontra, mas do modo como o bailarino percebe o espaço do corpo a partir das variações rítmicas da dança. Quando ele se desloca de maneira lenta e cautelosa, é “como se” dançasse em um espaço mais restrito e povoado de alguma coisa; quando ele corre, salta e gira com rapidez e leveza, é “como se” atravessasse um espaço grande, plano e oco (certamente, não uma sala de estar nem uma floresta!).
Ainda assim, o filme evidencia que o espaço do corpo não é um espaço de delírio dentro do qual o bailarino perde a noção do espaço objetivo que o circunda; apesar de existir “como se” fosse outro lugar, esse espaço é virtual, pertence ao corpo que o cria e não está separado do todo objetivo ao seu redor.

O primeiro aspecto impressiona desde o início o espectador que olha o bailarino em cena (e sofre ao mesmo tempo um processo de devir-bailarino): todo o movimento do corpo ou saída do corpo transporta-o sem entraves através do espaço; nenhum obstáculo material, objeto ou parede, impede o seu trajeto que não termina em ponto real algum do espaço. Nenhum movimento acaba num lugar preciso da cena objetiva, como os limites do corpo do bailarino nunca proíbem os seus gestos de se prolongarem para além da pele. Há um infinito próprio do gesto dançado que só o espaço do corpo pode engendrar. (GIL, 2004, p.53)
A sala (ou as salas, pois são mostrados dois ambientes diferentes) está composta de obstáculos (móveis, quinas, paredes), mas estes não impedem os movimentos do bailarino. A imagem sugere que o bailarino dança em um espaço regido por outra viscosidade, outros vetores, outros limites que não os do espaço objetivo. Gil explica o espaço do corpo como resultado de uma espécie de reversão do espaço interior do corpo em direção ao exterior, proporcionando ao espaço exterior uma textura que é própria do espaço interno:
O corpo do bailarino já não tem que se deslocar como um objeto num espaço exterior, mas desdobra doravante os seus movimentos como se estes atravessassem um corpo (o seu meio natural). (2004, p. 49)
A terceira idéia explorada no filme é a série de giros filmada em close do rosto do bailarino, brincalhonamente situado à frente de uma estátua de Buda com vários rostos que olham em diversas direções. A ação de “bater cabeça” aprendida nas técnicas de dança é transformada em analogia à “visão do todo” atribuída às divindades. A presença da estátua de Buda, única alteridade visível em todo o estudo, aparece como um duplo do bailarino, um dos múltiplos virtuais que se contemplam de um ponto de vista interior-exterior.
Nesta seqüência, ainda, Deren manipula o ritmo dos movimentos, com a alteração da quantidade de quadros por segundo capturados pela câmera. Esse jogo fala do que se passa no espaço do corpo em termos temporais. Utilizando um recurso que é próprio da arte do vídeo, Deren obtém um resultado eloqüente sobre a arte da dança.

Assim se formam essas unidades de espaço-tempo que caracterizam o movimento do bailarino. Não evoluindo no espaço comum, o seu tempo transforma o tempo objetivo dos relógios.
(...) O acontecimento, na dança, quer se trate de uma narrativa ou de uma dança abstrata, refere-se às transformações de regime do escoamento da energia, porque esta transformação de energia marca a passagem para um outro nível de sentido. O acontecimento é real, corporal, modificando a própria duração dos gestos do bailarino. (GIL, 2004, p. 54)
A série de “batidas de cabeça altera a percepção da passagem do tempo devido ao poder das repetições. Embora a ação seja a mesma, nós somos diferentes a cada vez que a presenciamos, e o fato de presenciarmos a mesma coisa de novo estando em um novo estado distorce a nossa percepção temporal. Acrescente-se a isso a vertigem proveniente da sensação de giro, e fica claro o sentido da modificação da relação de frames por segundo nessa imagem específica.
A quarta idéia experimentada é considerada a maior das realizações deste estudo. Não gratuitamente, foi escolhido para encerrar filme o tipo de movimento geralmente tido como o mais virtuosístico em dança: o salto. O bailarino executa um salto do tipo jeté (lançamento no espaço com impulso partindo de uma perna e chegando sobre a outra), que é filmado de baixo, ângulo que favorece a sensação de elevação. Na verdade, foram realizadas várias tomadas que são sobrepostas, em câmara lenta, resultando em um salto que se prolonga no espaço e que, do ponto de vista real da dança, seria de dificílima execução, pois o corpo do bailarino assume diferentes posições enquanto está no ar. Ele inicia lançando os dois braços à frente, com a cabeça pendida para trás, e passa-os pelo alto até abrir nas laterais (2ª posição). Ao mesmo tempo em que esse port-de-bras é executado, a imagem resultante sugere que o bailarino, tendo saltado para a frente, teria trocado o corpo para uma direção lateral no ar (fouetté), pousando, após esse feito fenomenal, em uma sólida, tranqüila e bem-acabada segunda posição en dehors.
Esse salto absurdo é o encerramento do discurso experimental de Maya Deren sobre a dança. Observando, porém, as considerações tecidas por Gil acerca do espaço do corpo, o que parecia mero delírio imagético da diretora revela-se como tradução visual, realizada com genialidade, de um conceito filosófico em dança. Gil afirma que o próprio corpo, secretando seu interior para o exterior, torna-se espaço enquanto dança:

O bailarino não atravessa o espaço do corpo como atravessaria uma distância objetiva, num tempo cronológico dado. Produz ao dançar unidades de espaço-tempo singulares e indissolúveis que transmitem toda a sua força de verdade a metáforas como “uma lentidão dilatada”, ou “o alargamento brusco do espaço” que descrevem certos gestos do bailarino. (2004, p. 54-55)
Em seu pouso final, o bailarino chega a um “equilíbrio de luxo ”. Seu corpo transmite a sensação de amplitude, utilizando uma posição ereta e lateralmente alargada para ilustrar o espaço do corpo. A 3ª dimensão, da profundidade, é conferida nessa tomada pela escolha do espaço exterior, aberto e elevado. A mensagem final mostra um corpo que se percebe superior e dilatado ao realizar o seu encontro com a dança.

Enfim...

Apesar do texto de Gil só ter surgido em 2002, pode-se encontrar uma impressionante aproximação entre as suas proposições e as imagens criadas por Maya Deren. Alguns trechos do “Corpo Paradoxal” parecem ter inspirado diretamente a montagem de “A study...”. Descartando essa hipótese, de cronologia impossível, é necessário admitir que a combinação conhecimentos sobre cinema e dança realizada por Deren resultou em um estudo brilhante. Através da mídia filmada, esta pioneira conseguiu fazer uma exposição filosófica da dança. A hibridação entre as artes da dança e do vídeo não poderia ter sido mais bem inaugurada.

Referências bibliográficas:


BARBA, Eugenio, and SAVARESE, Nicola. A dictionary of theatre anthropology. London: Routledge, 2006. 2nd. ed.

GIL, José. Movimento Total. São Paulo: Iluminuras, 2004.
clipped from www.youtube.com

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Friday, June 22, 2007

Videodança – espetáculo de dança em vídeo?


A videodança e o bailarino

Um espetáculo se instaura por intenção de um artista e presença de um (ou mais de um) espectador.

A dança, por ser um conceito abstrato, pressupõe um corpo ou corpos que a dancem. A dança é uma arte visual, espacial e temporal.

As imagens da dança podem ser capturadas em vídeo, e isso tem acontecido desde muito cedo desde o desenvolvimento das técnicas de seqüenciamento animado de fotografias. Como ferramenta de captura e armazenamento das imagens da dança, o vídeo é bem aceito e compreendido. Trata-se de um instrumento de registro, útil para aulas, improvisos, laboratórios coreográficos, espetáculos.

Além dos registros, uma nova gama de relações entre vídeo e dança tem sido descoberta e ao mesmo tempo criada. Descoberta, porque a sua possibilidade passou a existir desde o instante em que, havendo dança, houve também vídeo, e essas relações que não “foram”, mas “estão sendo” encontradas. Criada, porque as técnicas para estabelecer essas relações estão em desenvolvimento; são uma prática “in progress”, com meios e produtos em processo de invenção. A videodança é uma obra híbrida que necessita de criadores, intérpretes e realizadores, e que tem tentado firmar sua identidade enquanto gênero e enquanto resultado de um legítimo fazer artístico. É necessário promover estudos críticos que teorizem e reflitam sobre esse fazer e seus resultados para investigar as diversas implicações (estéticas, tecnológicas, culturais...) dessa hibridação.

A videodança propõe uma alteração nas concepções até então conhecidas a respeito do conceito abstrato dança. Talvez essa razão explique algumas das resistências à sua aceitação encontradas, por exemplo, entre a comunidade de dança. A própria fisicalidade, que é percebida e trabalhada pelo bailarino como o específico da dança, passa de uma importância absoluta a uma importância relativa, visto que as características espaciais e temporais da dança são modificadas na obra de videodança.

Na videodança, o tempo da dança torna-se dois tempos distintos e simultâneos: o tempo em que a imagem foi capturada e o tempo em que está acontecendo a reprodução da imagem. A execução da dança não está sujeita a modificações ou imprevistos, como ocorre com o espetáculo ao vivo. Ela não está atrelada à vida do bailarino, e independe da presença dele. Além disso, aceleração das imagens ou câmera lenta podem interferir no curso temporal dos movimentos. A ordem de execução de movimentos pode ser completamente alterada, entrar em loop, ser revertida ou simular timings não praticáveis para um corpo humano treinado em qualquer técnica.

Também o espaço tridimensional euclidiano, onde caracteristicamente a dança real acontece, aparece na videodança necessariamente descaracterizado pela projeção em um plano bidimensional e pelo recorte realizado pela câmera. A lei da gravidade e demais leis da física podem ser ultrajadas por meio dos recursos de captura de imagens e de montagem. Os corpos humanos podem ser mostrados em situações impossíveis no mundo concreto. O bailarino se vê em lugares e ações que não reconhece, e a dança não está mais no corpo, mas nos arquivos de imagem que mostram, conformam e deformam aquele corpo.

O resultado expressivo da obra de videodança é outra dimensão em que a contribuição do bailarino torna-se relativa. Por mais perfeitos e expressivos que sejam os movimentos realizados (e certamente a qualidade da videodança será superior se os movimentos tiverem grande clareza de expressão), o resultado expressivo que sobressai na obra em vídeo é fruto da perícia da montagem. Uma boa montagem tem o poder de manipular as respostas psicológicas do espectador e pode conferir às imagens do bailarino quaisquer diferentes conotações. Aqui, diferentemente da apresentação diante do público em tempo real, o bailarino não tem o controle sobre a dimensão expressiva da dança.

Em vista de todos esses aspectos, levantam-se uma série de questões. Como avaliar o papel do bailarino, intérprete da dança, nesse tipo de obra de dança que prescinde da sua presença física em cada reapresentação? Como a realização de uma obra de videodança altera a relação do bailarino com a própria dança, uma vez que, na filmagem, o bailarino normalmente não executa toda uma coreografia em uma única tomada, mas repete diversas vezes pequenos trechos coreográficos? Como o bailarino se relaciona com a câmera? Como se sente com a não-presença de público para assisti-lo dançando? Como o bailarino se relaciona com a sua imagem gravada, manipulada e fixada em um resultado que pouco se parece com o que ele efetivamente realizou?

Friday, February 02, 2007

Curso Ballet na Contemporaneidade com Silvia Wolff / parte 2 - considerações técnicas


No post anterior fiz minhas considerações gerais sobre o curso, e descrevi as atividades de apreciação e composição desenvolvidas. Aquele texto ficaria muito longo se acrescentasse também algumas descrições sobre a parte de técnica e execução, mas não quero deixar de fazê-lo. A maior parte das atividades do curso foi dedicada às aulas práticas de técnica de ballet. Neste texto, faço o registro das características enfatizadas em alguns dos passos típicos da aula de ballet (e creio que sejam muito interessantes, para aqueles poucos que apreciam aprofundar-se nos detalhes técnicos de ensino e execução deste estilo de dança). Estas são características da Escola Americana, que pode ser considerada uma escola contemporânea de ballet, como foram apresentadas pela Sílvia.

Dinâmicas:
  • Tendus com acento duplo, fora e dentro. O acento musical é marcado para dentro, mas mesmo quando feitos rápidos, há uma clara definição do tendu para fora.
  • Jetés muito rápidos. Esta dinâmica trabalha os músculos internos (adutores) da coxa. A rapidez é tanta que não se chega, às vezes, a atingir a exrtensão total do pé, e estes jetés são feitos com pouca altura.
  • Ronds de jambe par terre sem acento. As ronds também são rápidas, o que não permite haver a marcação dos pontos à frente, ao lado ou atrás. Não há uma preocupação com o cruzamento da perna na frente ou atrás, e também não há um acento na diagonal da frente ou de trás.
  • Os Frappés simples são muito rápidos, e são feitos sempre com strike no chão, exigindo o trabalho dos pés e a coordenação.
Outras características gerais presentes nas aulas:
  • O início das aulas é a execução de pliés e grands pliés, sempre principiando pela segunda posição, alternados com alongamentos de tronco.
  • O 2º exercício das aulas continha alguns trabalhos de rotação coxo-fen=moral, flexões dos pés e alongamentos em 6ª posição.
  • O aquecimento e detalhamento dos pés também foi muito trabalhado em relevés lents com o pé flexionado, terminando em tendus ao demi plié. Esses movimentos enfatizam o arco realizado pela perna com suavidade.
  • Há muita ênfase no trabalho fino dos pés, como nos exercícios para os dedos em tendus rápidos, e também ênfase no trabalho de arcos rápidos como ronds e demi-ronds com soutenu. Os exercícios também são combinados com muitas trocas de peso, alternando a perna de base.
  • A perna de base foi enfatizada em sua importância, por ser a receptora do peso do corpo. Em Balances, foi enfatizada a consciência do pedo sobre a perna de base, criando um vetor de força contra o chão para criar a elevação do tronco.
  • São muito utilizados os Enveloppés com demi-plié, rápidos e em ângulos baixos, fazendo círculos com o pé e com atenção no detalhamento da chegada do pé de volta à 5ª posição. Esses exercícios que exigem passadas rápidas da planta dos pés pelo chão desenvolvem a noção de contato com o chão, firmam a base e fortalecem a musculatura do arco do pé.
  • Fondus: muita atenção é dada ao cruzamento do cou-de-pied. Em fondus com pernas mais altas, passa-se por passé e developpé; não é feita a abertura direta do ângulo de cou-de-pied à perna alta. A perna de trabalho não abre em uma linha reta, mas faz um arco, ao aprofundar o cruzamento do cou-de-pied e delizar suavemente até a posição aberta.
  • Grands battements: fizemos um exercício interessante para a liberação da articulação coxo-femoral. Os dedos da perna de trabalho marcam uma batida no chão (com o joelho dobrado) cruzada à frente e outra batida cruzada atrás da perna de base, antes de fazer um developpé muito rápido e alto ao lado, repetidas vezes. /também foram feitos grands battements em cloche, em attitude, coordenados com um trabalho de soltura (pendulação) do braço.
Algumas características do trabalho de centro:
  • O exercício inicial é uma combinação de tendus com muita alternância de pernas.
  • Sempre há um exercício para treinamento de pirouettes de 5ª posição, rápidas. Algumas das dicas relativas à execução de pirouettes foram: não abrir o braço correspondente à direção do giro, mas utilizar o impulso forte do braço que fecha. Buscar a mudança rápida da cabeça e o passé rente à perna. Usar o vetor de força contra o chão.
  • Em pirouettes en dehors partindo de 4ª posição, o peso fica todo sobre a perna da frente, e a perna de trás é esticada, sendo apenas flexionada rapidamente no momento de arranque da pirouette. O braço da frente também é preparado alongado, e não abre antes do giro. O braço que fecha é que traz o impulso para o tronco.
  • Em saltos, os passos intermediários são apenas passagens para gerar impulsos. Não é necessário ter tanta preocupação com a sua forma. A perna de impulso do salto é a mais importante, e novamente deve -se estar atento ao vetor de força.
  • Em Jetés e Assemblés, logo é buscado o cruzamento ou união das pernas.
  • Em Changements, o acento localiza-se em uma troca rápida dos pés. A 5ª que é mostrada no ar não é o cruzamento origem, mas o de chegada.
  • Os Pas-de-bourrée depois de arabesques iniciam por relevés e não por demi-pliés na perna de base.
  • Foi enfatizado o uso do foco durante os exercícios do centro. O olhar deve ter definição e participar da movimentação. Essa dica faz muito sentido e muda a atitude do bailarino, considerando-se especialmente o espaço onde ocorreram as aulas, que não possuía espelhos.
Finalmente, algumas dicas que foram correções importantes para o meu desempenho individual:
  • Buscar o relaxamento do arco do pé no chão, especialmente em ronds e cloches, e principalmente o pé esquerdo.
  • Em arabesque penchée, o peso deve ser colocado mais sobre a ponta do pé de base, e não sobre o calcanhar.
Outra informação que considerei relevante foi a menção a uma pesquisa sobre o ponto de balance. A idéia é a projeção de uma sombra desde o quadril até o chão: segundo essa pesquisa, dentro de toda essa área há possibilidade de se encontrar equilíbrio, e não apenas sobre um único ponto de eixo vertical. Isso relativiza a suposta "rigidez" do balance, possibilitando a aceitação de um equilíbrio ativo. É a introdução de novas idéias como essa que legitimiza a continuidade do ballet como forma de arte na contemporaneidade, avançando além dos limites anteriormente estabelecidos e podendo ser ainda reinventado.
Mais uma vez, e por todos os motivos anteriormente citados, reitero o valor desse curso, e lamento o pequeno número de participantes (apenas 4). Embora essa quantidade de alunas tenha proporcionado a dedicação personalizada de atenção pela professora a cada uma de nós, é uma pena haver poucos interessados, ou poucos interessados com oportunidade de realmente frequentar essas aulas e contribuir na ampliação e diversificação das discussões.

Curso Ballet na Contemporaneidade com Sílvia Wolff / parte 1 - considerações gerais


No período de 8 a 12 de janeiro de 2007, tive a oportunidade de frequentar mais um excelente curso de dança. Este curso foi oferecido como atividade de extensão no Departamento de Arte Dramática da UFRGS com o título de Ballet na Contemporaneidade. Tudo a ver comigo e com o que tenho estudado! Acho que eu não faria um curso de Ballet Clássico, nesses dias, se não tivesse um apelo muito especial, e essa proposta de falar sobre o ballet como ele está sendo compreendido e trabalhado dentro da atualidade da dança era o que eu precisava. Sílvia, a professora, já era minha conhecida de muitos anos, embora não muito próxima. Informada sobre a trajetória dela, confiei que tivesse bastante a oferecer, e não me decepcionei em nenhum momento.
Este foi um curso abrangente, no que concerne ao estudo de uma forma de arte. Eu sempre volto a considerar SWANWICK* e seu modelo pedagógico para a educação musical, cuja pertinência estendo às outras pedagogias da arte: o modelo tEClA. Técnica, Execução, Composição, Literatura e Apreciação. As letras minúsculas na sigla (em inglês é ClAsP, composition, literature, appreciation, skills, practice) significam que aquelas são as atividades secundárias, enquanto as mais importantes, Execução, Apreciação e Composição, são escritas em maiúsculas.
Essas três instâncias práticas foram abordadas no curso, o que comprova a visão contemporânea sobre um curso de Ballet, porque as aulas tradicionais costumam contemplar quase exclusivamente técnica e execução. Neste curso, a maior parte do tempo foi realmente ocupada com técnica e execução, mas existiram os outros momentos também, e todos foram ricos em informações e experiências importantes. Houve espaço para debate e questionamento, coisas que a aula de ballet clássico tradicional e historicista não fomenta. Alguns professores até mesmo reprimem quando os alunos questionam coisas que possam "abalar os pilares tradicionais" como o significado de certos movimentos coreográficos e a possibilidade de executar certos passos com diferentes graus de tensão muscular. Na tradição clássica, alunos não falavam. O professor era sempre considerado um mestre (maître de ballet) e suas orientações eram inquestionáveis. O modelo pedagógico era impositivo e autoritário; autonomia por parte dos alunos não era uma possibilidade.
A aula iniciava seguindo a estrutura tradicional: exercícios na barra, seguidos por exercícios no centro. A música utilizada foram CDs (devido à não existência de piano e, certamente, aos altos custos implicados ao contratar-se um pianista acompanhador). Os três primeiros dias decorreram assim, com a execução dos princípios técnicos e inovações sobre a técnica tradicional provenientes principalmente da Escola Americana de ballet, que é uma escola tardia, estabelecida no séc. XX, muito depois das Escolas tradicionais.
No 4º e 5º dias do curso, tivemos momentos dedicados à apreciação. Assistimos gravações em DVD de William Forsythe e sua esposa em seus trabalhos de improvisação, da bailarina Darcey Bussel ensaiando e dançando coreografias de Forsythe, de coreografias de Mark Morris (para as estrelas masculinas de uma importante companhia norte-americana de ballet), de Jiři Kilian, de Matts Ek e do trabalho que a própria Sílvia faz com Luiz Bongiovanni em são Paulo, utilizando as técnicas de composição por tarefas desenvolvidas por Forsythe. Todas essas filmagens foram escolhidas porque mostram trabalhos de coreógrafos que criam dança contemporânea a partir do vocabulário clássico, ou para corpos treinados em ballet, introduzindo inovações estéticas e expandindo as fronteiras da técnica tradicional, tema que a silvia tem estudado em seu mestrado e agora em seu doutorado. Discutimos sobre as características dos movimentos e sobre as escolhas estéticas dos diversos coreógrafos. Algumas peças valorizam o movimento abstrato, os jogos formais entre solos e grupos de bailarinos. Em alguns casos, há o culto do virtuosismo; em outros, têm destaque a teatralidade, a cenografia e a iluminação, a dramaturgia do movimento. as relações com a música também puderam ser observadas em manifestações contrastantes, tendo algumas composições um relação literal, conferindo à música um poder hierárquico quase ditatorial sobre a coreografia, enquanto outras se emanciparam dessa hierarquia, chegando a reservar à música o papel de faixa ou ambientação sonora.
No 5º dia, fizemos também uma atividade de composição. a professora expôs um pouco mais sobre o método de improvisação por tarefas desenvolvido por Forsythe. Os bailarinos recebem alguns elementos (que incluem figuras geométricas, símbolos gráficos como letras e pontos e outras instruções de caráter formal) e pesquisam maneiras de transformar esses elementos em movimentos em quaiquer partes do corpo e em infinitas possibilidades espaciais. Para a nossa tarefa, recebemos os seguintes elementos:

. ___ MSR S

Sendo: círculo; ponto; linha; match, slide, rotate**; letra S (ou outra letra, como a inicial de cada bailarina)
Trabalhamos com esses elementos por algum tempo, terminando por estabelecer uma pequena composição individual. Não era necessário seguir essa ordem específica para ordenar os elementos, e também se poderia repetir ou estabelecer outras transformações em sua forma. Cada aluma mostrou sua sequência, e a professora deu sugestões para enriquecer a composição, trazendo outros conceitos como o "colapso de pontos" (quando um ponto indicado por uma parte do corpo no espaço cai abruptamenteté o chão), a "abreviação" (manipulação rítmica do movimento, tornando-o mais rápido) e a "manipulação de partes do corpo" (uma parte do corpo, geralmente as mãos, conduz as demais partes). Observamos as composições de cada aluna e pudemos analisar as diferentes idéias e propostas surgidas devido aos diferentes backgrounds corporais. Discutimos conceitos como foco, monocordia e contraste, e a necessidade de encontrar, diferentes soluções para estabelecer a ligação entre um elemento e outro.
Devido a todas essas experiências, avalio este curso como muito bom e completo em termos de prática de dança. Talvez o ganho mais significativo tenha sido o estabelecimento de relações entre a dança como treinamento físico e como forma de arte, que me parece pouco discutido nos cursos e oficinas de dança em geral. A maior parte dos cursos destinados à formação do bailarino tratam enfaticamente das técnicas corporais mas não estabelecem essa ligação com a dança como produto artístico que desemboca em uma concepção cênica formatada a partir de escolhas que, além das capacidades físicas do bailarino, implicam em convicções estéticas, filosóficas, políticas, históricas...

* Keith Swanwick, educador musical inglês, cuja obra tem servido de referencial teórico para a pesquisa em educação musical em diversos países, incluindo o Brasil.

** MSR é um procedimento compositivo frequente na técnica de improvisação de Forsythe, onde se estabelecem com quaisquer partes do corpo duas linhas paralelas (match) que em seguida são deslocadas uma em relação à outra em um movimento de deslizamento (slide) e de rotação (rotate), deixando então de ser paralelas.


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O meu melhor papel nesta vida é o da aprendiz. Por isso o nome deste blog é apprenticeship, e provavelmente por isso gosto e quero fazer cada vez melhor o papel de professora. ..