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This blog is a compilation of thoughts on things I've been learning.

Sunday, March 23, 2014

Relacionamentos e expectativas, éticas interpessoais.

"Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez tua rosa tão importante", ensinou a raposa ao pequeno príncipe.  Ensinava sobre ética. Uma ética linda, porém, não é a única...

Este é um texto sobre relacionamentos. Vou falar um pouco sobre Direito, mas é só o ponto de partida, portanto, se você não é interessado em Direito, eu peço que tenha um pouco de paciência e me acompanhe porque logo entrarei no assunto que quero realmente abordar.
Estudando sobre direito empresarial, deparei-me com a seguinte questão: por que haver um ramo separado (empresarial é a nova denominação do que nasceu como direito comercial, um ramo autônomo que se desenvolveu à parte do direito civil) e não simplesmente ser parte integrante do velho e clássico direito civil que regulamenta os fatos da vida de todo mundo?
A resposta é, além de interessante, reveladora. Reveladora de como a Ética pode adquirir diferentes nuances e que qualquer argumentação racional pode justificar a adoção de determinados princípios ao invés de outros. A-HA!
O fato é que o direito empresarial se liga à ética de mercado, da atividade empreendedora, do profissional de negócios, de produção e comércio. Nessa ética não há ranço com relação à obtenção de lucro, vantagens, resultados, expansão. São valores perfeitamente desejados e respeitados. O empresário é autointeressado e busca a própria capitalização pelos meios que forem necessários.
Por outro lado, há a outra ética que rege o direito civil. Há obrigatoriedade de equilíbrio entre dois lados de um contrato. Há os valores da família, da proteção dos menores, incapazes, desfavorecidos. Há a proteção dos direitos da personalidade. E há o respeito à boa-fé e à lealdade devida à confiança estabelecida ans relações. Em outras palavras, o direito civil confere responsabilidade aos que despertam a confiança de outrem, e exige que expectativa criada seja respeitada. O sujeito no âmbito civil não é o mesmo sujeito autointeressado empresário, ele está muito mais implicado nas funções sociais da vida civil. Aqui está um ponto muito relevante!
Obs.: Sim, existe também a função social da empresa, "enfiada" com algum custo "goela abaixo" do direito empresarial para garantir integridade sistemática ao ordenamento jurídico dos Estados Democráticos de Direito. Mas isso não muda o fato de que a atividade empresarial é regida por uma ética diferenciada e que por isso é improvável uniformizar os ramos do direito civil e do comercial.
Trago agora essa visão das duas éticas do âmbito jurídico para pensar sobre os relacionamentos interpessoais. Olho para os relacionamentos como contratos e negócios realizados entre os sujeitos. Penso sobre as promessas que se fazem, inclusive as não ditas, mas implícitas em atos, comportamentos, atitudes que se reiteram nas conversas, nos encontros, nas trocas de mensagens. Condutas criadoras de expectativas legítimas. São ou não são fontes de obrigações? Não jurídicas, mas axiológicas? Não há valores imateriais devidos? Qual é a ética que cada pessoa empresta a suas atitudes e às expectativas que elas criam nas outras pessoas? A ética civil ou a ética empresarial?
Provavelmente a maioria das pessoas não pensa nisso. Nem sequer imagina que seus atos podem ser interpretados sob um ponto de vista ético nessas circunstâncias tão banais. Mas o fato é que eles podem, e eles são. Há criação de expectativas todo o tempo, e nasce automaticamente uma responsabilidade quanto as expectativas criadas, especialmente se se entende a vida de um ponto de vista ético permeado por valores humanísticos.
Não exageremos: um único encontro, umas poucas conversas, não têm um peso tão grande. Mas ao se reiterarem os comportamentos, ao se estenderem no tempo, começam os laços de responsabilidade a se formar. Relacionar-se com os outros significa intercurso de ideias, conhecimentos e emoções.
Trocas acontecem, E há expectativa de que o que é demonstrado continuará a ser da mesma forma. Cada parte tem uma confiança que se estabeleceu, que essa relação tenha determinadas características que já foram reiteradas, e que isso seja verdade.
Mas as pessoas são livres para que suas vontades mudem. Qualquer sistema de ética reconhece isso. O que difere é a visão de responsabilidade que uma pessoa assume diante das expectativas criadas no outro ( e em alguma medida criadas em terceiros também, nas pessoas próximas que estão ao redor da relação, mas não compliquemos).
As pessoas que pautam sua vida pessoal por uma ética empresária têm uma visão pragmática das relações. Enquanto a relação me favorece, eu alimento e mantenho minhas atitudes, caso contrário, eu mudo. Ou abandono a relação. Não me sinto responsável pelas expectativas criadas no outro; vejo isso como um problema dele. Minha vida é meu empreendimento e a sua deveria ser também. Penso que cessou a lucratividade desta relação e meu interesse se desfaz, e você provavelmente deveria pensar da mesma forma.
Não se trata aqui de fazer uma censura a essa forma de pensar! É outra ética movendo a pessoa, que é livre para optar viver de acordo com ela. Quem poderia dizer que uma forma de ética é boa ou ruim, melhor ou pior? Julgar moralmente a ética será só uma opinião. Um julgamento moral sobre a adoção de um princípio moral não me parece que vai levar a algum lugar. Não o façamos.
As pessoas que pautam sua vida pessoal pelo que chamei aqui de ética civil pensam parecido com a raposa do pequeno príncipe. Percebem-se cativando as expectativas do outro e levam isso como uma responsabilidade de atender à confiança criada. Em caso de mudança de vontade, não modificam a relação unilateralmente. Esse negociar com o outro é a boa e velha discussão da relação.
Aqueles que fogem disso, que ridicularizam mesmo a "DR", que preferem chamar o reconhecimento de uma responsabilidade perante o outro diante de uma expectativa legitimamente criada pelo termo pejorativo de "MIMIMI" estão provavelmente assumindo a ética empresária como postura de vida.

Conclusão?
Se você se relaciona com pessoas cuja ética difere da sua, provavelmente vai haver conflito quando as vontades envolvidas levarem a uma modificação no relacionamento.
Além do possível sofrimento causado pela mudança na relação, se a mesma mudança não for desejada pelas duas partes, um sofrimento extra se instala por conta dessa percepção de que os valores éticos são diferentes. É outro nível de sofrimento que às vezes é inconsciente mas que também acontece e que também magoa.
O meu conselho pra mim mesma, e que desejo seguir fortemente, é compreender isso e usar em meu próprio benefício, para crescer e ser uma pessoa mais forte.
... e acabo de revelar, na frase acima, a minha postura ética pessoal. Eu sou uma raposinha civil muito preocupada com a responsabilidade que nasce perante aqueles a quem cativo. Os "empresários" estão todos por aí ao meu redor fazendo e desfazendo relações autointeressadas sem se obrigarem à lealdade com as expectativas.
Eu conviverei com isso.

Sunday, March 31, 2013

 Pratico kung fu há aproximadamente 3 anos e tenho um background de mais de 30 anos em dança. Nas artes marciais, bem como em todas as práticas corporais complexas, é costume se ouvir falar em superação, desfio, excelência, muitas vezes em frases que pretendem ter o efeito de encorajar o praticante a não sucumbir ao cansaço e às dificuldades que encontra. Superação, desafio, excelência, que significado têm afinal esses termos? E se há tanta dificuldade, onde fica o espaço para ser feliz praticando kung fu? Qual é o fim da prática?
Lendo Aristóteles, descubro que ele liga a felicidade à excelência, e me pergunto: a felicidade no kung fu seria a excelência em sua execução?  E penso que a felicidade nesta prática não é necessariamente ter atingido a excelência, mas ter o objetivo de se aproximar dela cada vez mais.
Se a felicidade for a excelência, o praticante será um cosntante não-feliz, porque a excelência estará sempre mais adiante. A felicidade não está também apenas no praticar em si, pois este parece incompleto, e está sempre suejito a imperfeições, erros, esquecimentos...
Provavelmente a felicidade está no processo: no fato de que praticar, com a devida dedicação e constância, traz particulas de excelência e essa evolução, e o conhecimento dessa evolução, são altamente satisfatórios.
O praticante é feliz porque pode praticar e melhorar-se; porque ele vê diante dele um caminho cheio de muitas excelências a serem conquistadas, e porque de tempos em tempos ele percebe os resultados de melhora sendo acrescidos em seu conhecimento de kung fu (conhecimento prático).
Por isso a ligação com o tempo. a excelência em kung fu é necessariamente resultado da busca ao longo do tempo. Quanto mais tempo o praticante tiver envolvido, durante sua vida, nesse caminho prático, mais porções de excelência ele terá consquistado. Por isso, ao chegar em uma idade avançada, o praticante que tiver dedicado um longo tempo ao kung fu será mais satisfeito com os resultados de sua dedicação, pois ele terá recolhido grandes porções de excelência, e terá sido feliz por um longo tempo por causa disso.
Assim parece que a forma de ser feliz é compreender isso: que o fim não é a aquisição de um "X" ponto de excelência final, mas a conquista paulatina de microexcelências pessoais. Aquilo que é denominado "superação" e que está medido por cada sujeito com suas fraquezas, imperfeições e erros individuais, pois são essas conquistas possíveis que ele precisa fazer para tornar-se diferente de um si mesmo inicial, ruim e imperfeito, e cada dia outra forma de si mesmo, mais excelente. O desafio não é chegar a "uma" excelência, "A" excelência, como se se considerasse a existência de um determinado "ideal" com o qual devêssemos ficar o mais parecidos possível. A excelência não é um modelo, um determinado resultado, cópia dos mestres que consideramos que a atingiram. A excelência é o melhor resultado possível ara cada praticante, e pode se revestir de muitos tipos de resultados distintos. O que é necessário lembrar é que não há um limite. Até se pensarmos que a excelência é ficar vcomo o mestre "Y", por mais inalcançável que esse resultado pareça, isso seria delimitar a excelência, dar a ela uma determinada forma e jeito. E como disse antes, a excelência se caracteriza por estar sempre um pouco além, porque é assim que o praticante recolhe felicidade de sua prática: tendo uma meta superior, sempre. Esses são os significados que me parecem verdadeiros, no momento, para os termos "desafio" e superação".
Na "Ética a Nicômacos", Aristóteles diz: "(a felicidade) é uma certa atividade da alma conforme à excelência". A felicidade vista como ativdade, e não como fim. Se fosse o fim, ela seria desejada para que acabasse... acabaria a prática quando praticante estivesse "pronto" e portanto "feliz". Mas e se o praticante continuasse praticando depois de ter atingido essa felicidade, a prática não mais poderia trazer felicidade, então ela traria infelicidade ou indiferença, e isso ela não poderia ser, ter um efeito oposto ao que ela tinha antes, ou cessar de ter efeito...
Avançando mais um pouco na leitura, Aristóteles diz que "são nossas atividades conformes à excelência que nos levam à felicidade, e as atividades contrárias nos levam à situação oposta". E aqui encontro a explicação para vários escrúpulos que venho tendo, e reconheço também a presença da ética.
Se para mim é uma escolha e faz sentido ser feliz com o kung fu, mimhas ações em conformidade com ele contribuem para minha felicidade, e aquelas que forem contrárias roubam-na, maculam-na.
Exemplos: determinei uma rotina de treinos, que no momento está bem estruturada no agendamento de meu tempo e que me parece apropriada para a quantidade de investimentos que quero e posso fazer na prática agora. Se eu descumprir essa minha determinação (faltar aos treinos que previ), estarei atrapalhando minha felicidade com o kung fu. Da mesma forma acontece se fizer coisas que perturbam a qualidade da minha energia e as condições de meu corpo, tirando a qualidade da prática. Por isso beber é ruim para minha prática. Ficar até tarde em festas, acrescentar outras atividades físicas contraditórias ou extenuantes, ficar exposta a doenças (ar condicionado, por exemplo) são algumas condições desfavoráveis e destroem o projeto de felicidade por excelência na prática, dentro dos padrões que eu reconheço e desejo manter.
Isso são considerações éticas, pois escolher agir de acordo com o compromisso feito com o treino é a melhor escolha para que não haja sabotagem deste projeto de felicidade e, consequentemente, conflito e decepção. Também agir em conformidade com os valores relacionados ao kung fu e às artes marciais em geral, como honra, benevolência, etc (os valores descritos no BUSHIDO, por exemplo) torna-se imperioso para que a excelência da atividade seja mantida e esteja completa.
Provavelmente, quando um praticante sente que está se desinteressando da prática, ou quando começa a ver empecilhos à sua continuidade (de natureza pragmática, psicológica, física, não importa, porque o intelecto humano consegue justificativas para qualquer coisa) o que está na realidade acontecendo é que, não agindo em conformidade com a excelência que é o objetivo da prática, ele esteja sentindo as consequências dessas asbotagens à felicidade que a atividade propicia. É por isso que se afirma que o trabalho é árduo e que o caminho é como andar sobre um fio de navalha, em que desviar-se consiste em cair em abismos de um ou outro lado. A metáfora é bastante forte, talvez exageradamente forte. Nem sempre se despenca quando se comete desvios, mas sempre se atrapalha um pouco o estado de felicidade.
O verdadeiro perigo é não perceber onde está a (auto) sabotagem e não decidir se contrapor a ela antes que comece a gerar mais conflito e infelicidade do que felicidade no comprometimento com a excelência na arte marcial.
Aqui parece necessário copiar uma longa citação de Aristóteles, pois ele consegue explicar por que a prática de kung fu se torna um compromisso de longo prazo na vida daqueles que descobrem uma maneira de serem felizes através dela:
"(...) pois nenhuma das funções do homem é dotada de tanta permanência quanto as atividades conformes à excelência; estas parecem ser até mais duradouras que nosso conhecimento das ciências. E entre essas mesmas atividades, as mais elevadas são as mais duradouras, por ocuparem completa e constantemente a vida dos homens felizes, pois esta parece ser a razão de não as esquecermos.
O homem feliz, portanto, deverá possuir o atributo em questão e será feliz por toda a sua vida, pois ele estará sempre, ou pelo menos frequentemente, engajado na prática ou na contemplação do que é conforme à excelência. Da mesma forma ele suportará as vicissitudes com maior galhardia e dignidade (...)"

Thursday, May 06, 2010

Questão de ética... qual o motivo para umas pessoas respeitarem às outras?



Adorei esse texto do Lévy (LÉVY, Pierre (2007): A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço (5 ed.). São Paulo: Loyola. p. 27). O livro fala do mundo agora mediado por computador e por tantos outros aparatos que nos permitem conversar e ventilar nossos pensamentos e nossas identidades está construindo uma grande forma inteligente coletiva. Mas o trecho reproduzido a seguir me fez refletir sobre um outro tema que vem ocupando meus pensamentos com frequência ultimamente: ética. Tenho tentado compreender a ética que rege as minhas atitudes, desde que assumi que não enquadro meu comportamento exatamente nos ditames da moral cristã (que embasam os princípios éticos mais arraigados na nossa cultura ocidental de raiz judaico-cristã).

O Lévy diz:

"Postulemos explícita, aberta e publicamente o aprendizado recíproco como mediação das relações entre os homens. As identidades tornam-se identidades de saber. As consequências éticas dessa nova instituição da subjetividade são imensas: quem é o outro? É alguém que sabe. E que sabe as coisas que eu não sei. O outro não e mais um ser assustador, ameaçador: como eu, ele ignora bastante e domina alguns conhecimentos. Mas como nossas zonas de inexperiência não se justapõem ele representa uma fonte possível de enriquecimento de meus próprios saberes. Ele pode aumentar meu potencial de ser, e tanto mais quanto mais diferir de mim. Poderei associar minhas competências às suas, de tal modo que atuemos melhor juntos que separados. As “árvores de competências”, hoje comuns em empresas, escolas e quartéis, permitem desde já ver o outro como um leque de conhecimentos no Espaço do saber, e não mais como um nome, um endereço, uma profissão ou um status social."

Esse é um tipo de reflexão ética que me interessa. Não está sujeito a dogmas de uma moral moldada por nenhum tipo de religião. Não vou respeitar o outro porque ele é o meu "próximo", "irmão", "ser humano", "filho de Deus" ou qualquer outro conceito inspirado por um ideal de "fraternidade". Pensar o respeito pelos demais humanos da forma como Lévy descreve me agrada, porque parece propor um tipo de respeito moldado pela liberdade. Reconhecendo no outro experiências, saberes e competências diferentes das minhas, considero o valor que essa pessoa tem de ocupar um lugar no mundo que é dividido comigo e, pela consideração desses valores, troco a idéia de "dividir" ou "repartir" o espaço (ou seja, uma idéia de que o outro está ocupando algo que poderia pertencer a mim, pela idéia de "compartilhar" tanto o território quanto as idéias, para que reciprocamente ambos vivamos melhor. É uma justificativa para aceitar a simbiose entre nós seres ocupantes de um mesmo tempo e um mesmo espaço.
Provavelmente para aqueles muito contaminados pelos pensamentos cistãos essa minha afirmação de um egoísmo primordial soará muito impoliticamente correta. Porém, não irei jamais negar as molas íntimas que me movem. Lévy me ajudou a entender que eu respeito o outro não porque isso é "fazer o bem"; respeito-o porque sei que não sei e não me interesso por todo tipo de assunto, e que os outros que desenvolvem essas outras competências tornam a minha vida contemporânea mais interessante, saudável, confortável, rica e estimulante. Isso é inteligência coletiva.

Tuesday, July 08, 2008

9 páginas manuscritas

Texto escrito ontem à noite, 7/7/2008

Acabo de chegar do cinema. Assisti O Sol (Alexandre Sokúrov, Rússia, filme de 2005), sobre o imperador do Japão em 1945.
Acho que esse foi um ótimo filme, porque deixei o cinema conservando o ritmo, o tempo e as cores do filme. Respirando calculadamente, andei devagar todo o percurso do cine até a minha casa, nesta noite fresca, ou quase fria, tratando-se de Rio de Janeiro.
Acho que bons filmes ficam na pessoa assim; permanecem. Percebi que, ao sair do cinema, tudo estava um pouco diferente. Acho que é isso que busco em uma obra, uma obra de assistir, e os filmes e certos espetáculos têm isso, porque eles trabalham com o tempo, e dessa forma eles têm a oportunidade de inscrever um afeto, um estado de ser que perpassa a vida do espectador por algum momento. E se aloja lá, entre as experiências, ou na memória... mas eles existem e se relacionam com a pessoa, e para a pessoa que busca isso, é importante.
Tanto esse clima permaneceu comigo que, ao chegar, não quis deixar desfazer a atmosfera; este estar em si mesmo tão quieto e tranquilo que veio comigo, e não fiz o que rotineiramente faria apesar de ter pensado em fazê-lo. Desliguei o computador, após ter rapidamente verificado que o vídeo que passou tantas horas tentando ser incluído no You Tube finalmente terminou o uploading... mas foi rejeitado, por ultrapassar o tempo permitido. Tive o tempo de ver isso, mas não estressar, não perder a vontade de posteriormente refazer o corte para dividir em mais partes, e o que é mais importante, de desligar.
Pensava em dar só um descanso pro computador e voltar a ligar depois de um tempo... mas desisti.
Preparei meu chá e voltei ao quarto, já iluminado com a pequena luz da minha luminária, que eu gosto de pequenas luzes indiretas e ambientes semi-obscuros para ficar à noite. De maneira alguma desejei então voltar a habitar o mundo distrativo da Internet. Essa sensação forte e calma de mim mesma estava muito boa, e resolvi então anotar tudo o que estava pensando em anotar, na caneta, no papel, tomando meu chá de jasmim e iluminada apenas por essa luz, nem tão poética por ser uma luz branca, mas a melhor de que dispunha no momento.
E me incomodou a consciência de que não tenho um lugar confortável para sentar; de que não tenho tido um lugar confortável para sentar faz mais de um ano já, desde que cheguei aqui, bem como ontem tinha me dado conta de que não tenho tido um lugar confortável para deitar, mas sempre camas ruins: colchão muito fino; no chão; sofá meio quebrado e torto; colchão de madeira que parece uma cama de faquir.
Meu corpo não encontrou um lugar neste lugar, e aí está um dos fatores que eu não tinha ainda ligado ao meu desconforto geral de estar morando aqui no Rio. Cadeiras quebradas, camas sucatas, nenhuma poltrona ou sofá para acomodar e assentar o corpo... isso é mau, e sentei-me no chão apoiada nuns travesseiros e com as costas contra a cama. Foi o melhor que eu pude resolver...
...para escrever, e escrever sobre esse filme, que teve ese poder de me inundar com esse sentimento, e para escrever também sobre essas memórias corporais que me vieram à tona e que se fizeram claras, e para escrever ainda de certa forma sobre essas outras impresões dessa minha vida aqui; uma ilha tão diferente no curso até hoje da minha existência... desde que nasci Stela, pelo menos; desde o que eu sei.
E me dei conta também que não me agradam eses ruídos tantos dos outros moradores deste prédio que me invadem, porque não tenho como fechar a audição. De como eu detesto esses pedaços dessas vidas deles que me chegam: as discussões em família, os filmes e programas de televisão, as conversas telefônicas, as músicas, as visitas ruidosas, as portas que batem, os joguinhos eletrônicos, a cadela que grita, os banhos, o nariz todo dia assoado ruidosamente, a água da privada que é acionada. as batidas e outros movimentos indistintos que ocorrem mais ocasionalmente. Nomes de pessoas que eu não conheço, despertadores que soam, telefones e bipes, campainhas e interfones que tocam, sons de chat no MSN. As frituras que são feitas e que, além de soar, cheiram; as crianças que choram e que são repreendidas. Parecem todos selvagens; as vidas que proporcionam esses sons soam toscas,banais, popularescas, grotescas.
Consigo me isolar desses ruídos, relevá-los? Muitas vezes; é a luta pela indiferença que cuidadosamente cultivamos nestas grandes cidades, nestes prédios assim. Nestes aglomerados humanos a única saída é a indiferença, o isolamento, a construção de uma barreira na compaixão e na empatia que fariam parte de seres humanos mais naturais, que vivessem em condições mais adequadas de territórios ou espaços onde perceber a si mesmos, sem toda essa invasão e moléstia que a interferência de várias vidas não-relacionadas e não-afinizadas propiciam.
Mas volto ao filme, que foi a mola disso tudo.
Critico apenas um excesso de estereótipo dado aos soldados americanos; pareceu maliciosamente tendencioso o uso exagerado de slangs e de uma visão demasiado forçada do americano típico do sitcom; aquele cara vazio, jocoso, que faz piadinhas muito rasas sobre tudo, incapaz de entender ou respeitar uma outra cultura. É claro que há isso entre eles, mas não em todos nem no mesmo grau; esse exagero contrastou demais no filme por ser tão diferente do brilhantismo como foi apresentado o clima de cerimônia e ponderação dos personagens japoneses.
Descontado isso, o filme é lindo e o seu tempo lento é perfeito e necessário para trazer o entendimento da vida desse imperador e do impacto dessa guerra mundial, não sobre o povo, naquelas imagens já tão reproduzidas da destruição e da miséria, mas sobre o maior representante político e cultural do Japão.
A cor de todo o filme, beirando sempre uma tonalidade de sépia, é coerente e também tranquila, sem deixar de ser monótona.
O som chama a atenção de maneira fascinante. Há pouca música, geralmente muito baixa; ela se intensifica apenas em um momento chave no ponto mais climático tendo um papel importante na virada psicológica do imperador. O que mais chama a atenção no som do filme todo, porém, são os ruídos ambientes: sutis paisagens sonoras de cada local, que habitam, que preenchem mesmo os supostos tempos mortos, em que se espera alguma coisa acontecer, no seu tempo cronológico de acontecimento, e não num tempo diegético, de montagem, de edição. O percurso, lento e rígido, do imperador até alguma porta; o tempo de organizar os pensamentos; o tempo de falar, de abotoar uma camisa, de fazer uma mesura com o tronco, de sentar. São intensificados esses tempos com ruídos do relógio, de algum aparato de comunicação que vem de outra sala, de uma ave rara que habita os jardins e que grita do lado de fora, de uma sirene que chega de muito distante e uma variedade de outros pequenos ruídos que constróem a cena tanto quanto as imagens. Uma cena que não tem pudor de querer ser tão realisticamente ruidosa e tão demorada quanto as coisas realmente são, sem pressa de avançar a história, mas ambientando. E tanto ambientando que nos faz mergulhar nessa determinada realidade das vidas mostradas por esses personagens.
O filme se dá ainda o tempo de passar por outras coisas que não têm função narrativa, mas descritiva da vida e dos valores de um imperador do Japão. As pesquisas científicas, a conversa com o visitante sobre a aurora boreal, a gravura que ele observa e o poema que escreve no seu tempo para refletir ou escrever, compromisso da agenda imperial cumprido disciplinadamente.
O conflito maior não é a guerra, e diria que nem ainda o contraste entre as culturas americana e japonesa que se confrontam. O maior conflito estabelecido é o do homem, esse imperador, que para os japoneses não é humano, nem assim pode ser considerado, mas uma criatura divina, um descendente do sol. E éssa questão que ele traz consigo, e que a tradição é tirana em conservar, que se trona o grande tema do filme e o ponto de vista eleito pelo cineasta para apresentar uma figura de poder da História. Esse ponto escolhido, que parece bastante difícil como sustentáculo para uma obra cinematográfica, foi cultivado e realizado com bom gosto, inteligência e um trabalho apurado de controle do tempo.
Claro que o filme tem também suas metáforas; ele não as nega. Uma interessante sequência de sonho ou do espaço da imaginação do imperador transforma peixes em bombas. A união do imperador com o comandante americano por uma extensão de suas bocas, concretizada nos charutos que se acendem, simboliza uma cumplicidade como que selada com um beijo...
Há ainda as sutis pinceladas de um humor patético, como o imperador fazendo pose de Charles Chaplin sem saber exatamente quem era ele, e a desconfiança de um criado sobre um possível envenenamento das caixas de chocolates Hershy's presenteadas pelos americanos.
E há o retrato do lugar reservado à mulher nesse mundo de cultura tradicional japonesa, alta poítica e estado de guerra: incognitamente reservada, afastada, nula; alguma coisa que faz parte de outros momentos da vida e que se configura numa lembrança, numa menção á distância, que nada intervém nos assuntos e nos fatos. pois a absolutamente única presença feminina (à parte de algumas fotografias de atrizes americanas que recebem reprovação por seu atrevimento) é a imperatriz que surge apenas na ultima sequência do filme e que apenas é informada sobre as decisões que já foram tomadas. Ela é delicada reservada, amorosa e submissa.
Realmente, escolhido para ser a opção menos pior no folhetinho do cinema, este filme acabou se transformando em uma notável experiência. Estou feliz por uma série de circuntâncias de acasos e dúvidas terem me levado a encontrar com ele, e admito, principalmente, isto: estou feliz por ter sido essa uma experiência individual, de mim comigo, solitária, pois só assim pude viver plenamente (sem ter que quebrar o afeto pela necessidade de interagir com outra pessoa imediatamente após o filme) uma rica coleção de impressões estéticas, intelectuais e afetivas. Inesperadas.

Sunday, October 21, 2007

A cineasta e o filósofo: Maya Deren e José Gil

Uma análise de “A study in choreography for camera” a partir de José Gil e “O corpo paradoxal”
(vide clip no final desta postagem)

“A Study in Choreography for Camera”, obra curta e experimental da cineasta Maya Deren combinando dança e vídeo, é um estudo fundamental para compreendermos a trajetória percorrida pelos registros de dança (desde os desenhos e litogravuras, passando pela fotografia e pela dança no cinema) até o estabelecimento do gênero videodança. Muitos são os méritos dessa obra. Realizada em 1945, reflete valores de uma época em que a dança, legitimando-se enquanto categoria artística, libertou-se da subordinação à música (daí a ausência de trilha sonora), e em que o corpo, veículo da dança, encontrava uma ressignificação nas esferas científicas, artísticas e sociais.
Maya Deren experimentou maneiras de fazer o filme falar sobre a dança, e suas soluções obtiveram resultados de maior alcance, talvez, do que ela própria tenha suspeitado. Abolindo quase que totalmente a frontalidade (essa condição só se estabelece no plano dos giros de cabeça), a dança mostrada não é feita para um espectador: o bailarino dança para si mesmo.
A combinação dos elementos de dança com os elementos de vídeo neste estudo resulta em uma montagem instigante; a cineasta elabora uma série de imagens provocativas em relação ao espaço onde o corpo está dançando. Os movimentos têm continuidade, mas o espaço se modifica. O que à primeira vista parece uma brincadeira divertida com as possibilidades de manipulação da imagem desdobra-se em questões que sugerem maior elaboração. Será que o plano panorâmico inicial, que reencontra o bailarino em quatro diferentes pontos da mesma mata, propõe uma ubiqüidade do ser dançante? Como entender os espaços abertos e fechados que se alternam, ligados apenas pela dança? O bailarino está dançando em todos esses lugares ou em lugar algum? A obra estará falando das sensações do corpo que dança?
Intencionalmente ou não, Maya Deren realizou um manifesto filosófico sobre a dança em forma de vídeo.

O corpo paradoxal

Sabe-se que o bailarino evolui num espaço próprio, diferente do espaço objetivo. Não se desloca no espaço, segrega, cria o espaço com o seu movimento. (GIL, 2004, p. 47)
É dessa forma que o filósofo português José Gil inicia o texto “O corpo paradoxal ”, onde introduz o conceito de espaço do corpo. Este espaço não é propriedade exclusiva do bailarino, sendo criado em situações de performance corporal (atores, esportistas, xamãs) e em qualquer situação onde ocorre investimento afetivo do corpo. Nessas situações, dá-se um efeito de prolongamento ou ampliação do espaço que rodeia o corpo, constituindo a ocupação de um novo espaço: o espaço do corpo. A partir da sua substância limítrofe, a pele, o corpo objetivo cria uma dilatação ou continuidade, como se o ar ou o espaço se recobrissem de “um invólucro semelhante à pele: o espaço do corpo é a pele que se prolonga no espaço, a pele tornada espaço”. (GIL, 2004, p. 47)
A formação desse espaço pode ser facilmente percebida quando utilizamos uma ferramenta ou quando dirigimos qualquer tipo de veículo. A pessoa que trabalha com uma câmera de filmagem, por exemplo, age como se seus limites corporais se ampliassem até a extensão da câmera, e passa a cuidar desse espaço prolongado que a câmera ocupa como se pertencesse ao seu próprio corpo. Também quando transportamos um objeto longo como uma escada, criamos um novo corpo virtual cuja forma ocupa contornos diferentes dos que habitualmente preenchemos. Se a escada bate em um obstáculo, às vezes reagimos como se tivéssemos golpeado nosso próprio corpo, podendo chegar a reproduzir sons ou expressões faciais como uma representação de dor (ainda que seja apenas uma dor moral – uma espécie de culpa por termos descuidado do nosso espaço do corpo).
No caso do bailarino, esse espaço é forjado sem a presença de outros objetos. Representado às vezes por uma esfera que circunda o corpo, e conceituado por Laban na forma de um icosaedro, o espaço do corpo é uma experiência real para o bailarino, “que se sente evoluir dentro de uma espécie de invólucro que suporta o movimento” (GIL, 2004, p. 48). Dentro desse espaço, o corpo se move sem enfrentar obstáculos e sem estar submetido a direções ou pontos de referência já fixados no espaço objetivo. Novos referentes são criados pelo corpo em seu interior, fazendo com que as direções exteriores submetam-se a eles, e não o contrário.
Para Gil, no espaço do corpo o bailarino multiplica-se em muitos corpos virtuais dentro de um meio que possibilita a maior fluência de movimentos. Ali ele sente-se dançar; acompanha o movimento de seu corpo contemplando-se a partir desses múltiplos pontos de vista que não estão apenas em seu espaço interior e também não estão no espaço objetivo. O espaço do corpo, composto de um “exterior intensivo”, possibilita essa percepção distendida do espaço (e do tempo) que o bailarino tem ao dançar.

O espaço do corpo em Maya Deren

As idéias de José Gil propiciam a realização de um aprofundamento da leitura das imagens criadas por Maya Deren. Os jogos espaciais propostos pela diretora encontram, nas palavras do filósofo, uma coerência que amplia a gama de significados da obra e enriquece a reflexão sobre o conhecimento em dança.
Para estruturar uma análise, podemos agrupar as seqüências de “A Study...” na conformação de quatro principais idéias experimentais propostas pela cineasta. Cada uma dessas idéias tem características próprias, mas todas elas discutem algum aspecto da relação do bailarino com o espaço do corpo criado pela dança.
A primeira idéia está contida na tomada panorâmica realizada em um ambiente externo cheio de árvores. O espaço é mostrado pela câmera como sendo uma unidade; porém, o aparecimento do mesmo bailarino em quatro pontos diferentes desse espaço contínuo introduz um elemento que abala a concepção ordinária que se tem sobre a presença de um corpo no espaço.
Segundo Gil, “um corpo isolado que começa a dançar povoa progressivamente o espaço de uma multiplicidade de corpos” (2004, p. 52). A multiplicação de corpos virtuais percebida pelo bailarino no espaço do corpo é assim revelada por meio de um engenhoso recurso de montagem visual. O corpo começa a mover-se e desdobrar-se em outros pontos de vista; o espaço do corpo começa a diferenciar-se do espaço exterior. Já a partir daqui começa a perder importância a concretude do espaço objetivo, pois o assunto passa a ser a dança que acontece dentro desse espaço do corpo.
A segunda idéia desenvolve-se a partir dessa mesma seqüência. A unidade espacial é quebrada, estabelecendo-se uma nova forma de unidade pela não interrupção da continuidade dos movimentos através de diferentes espaços.

Vários outros aspectos paradoxais do espaço do corpo manifestam-se claramente nos movimentos do bailarino: a ausência de limites internos enquanto, visto do exterior, é um espaço finito; o fato de a sua dimensão primeira ser a profundidade, uma profundidade topológica, não-perspectivista, de tal modo que misturando-se com o espaço objetivo, é suscetível de se dilatar, de se encolher, de se torcer, de se dispersar, de se abrir em folheados ou de se reunir num ponto único. (GIL, 2004, p. 52-53)
Da mata inicial, o bailarino passa a ser visto dançando dentro de uma sala e, a seguir, em um pátio. O espaço objetivo se encolhe e se alarga, mas nenhuma dessas condições parece afetar a amplitude da movimentação do bailarino. Percebe-se, no entanto, uma variação temporal: o ritmo é mais denso no espaço fechado, e acelerado no pátio. Essa seqüência corrobora com a idéia de que o filme não está falando do lugar objetivo em que esse corpo se encontra, mas do modo como o bailarino percebe o espaço do corpo a partir das variações rítmicas da dança. Quando ele se desloca de maneira lenta e cautelosa, é “como se” dançasse em um espaço mais restrito e povoado de alguma coisa; quando ele corre, salta e gira com rapidez e leveza, é “como se” atravessasse um espaço grande, plano e oco (certamente, não uma sala de estar nem uma floresta!).
Ainda assim, o filme evidencia que o espaço do corpo não é um espaço de delírio dentro do qual o bailarino perde a noção do espaço objetivo que o circunda; apesar de existir “como se” fosse outro lugar, esse espaço é virtual, pertence ao corpo que o cria e não está separado do todo objetivo ao seu redor.

O primeiro aspecto impressiona desde o início o espectador que olha o bailarino em cena (e sofre ao mesmo tempo um processo de devir-bailarino): todo o movimento do corpo ou saída do corpo transporta-o sem entraves através do espaço; nenhum obstáculo material, objeto ou parede, impede o seu trajeto que não termina em ponto real algum do espaço. Nenhum movimento acaba num lugar preciso da cena objetiva, como os limites do corpo do bailarino nunca proíbem os seus gestos de se prolongarem para além da pele. Há um infinito próprio do gesto dançado que só o espaço do corpo pode engendrar. (GIL, 2004, p.53)
A sala (ou as salas, pois são mostrados dois ambientes diferentes) está composta de obstáculos (móveis, quinas, paredes), mas estes não impedem os movimentos do bailarino. A imagem sugere que o bailarino dança em um espaço regido por outra viscosidade, outros vetores, outros limites que não os do espaço objetivo. Gil explica o espaço do corpo como resultado de uma espécie de reversão do espaço interior do corpo em direção ao exterior, proporcionando ao espaço exterior uma textura que é própria do espaço interno:
O corpo do bailarino já não tem que se deslocar como um objeto num espaço exterior, mas desdobra doravante os seus movimentos como se estes atravessassem um corpo (o seu meio natural). (2004, p. 49)
A terceira idéia explorada no filme é a série de giros filmada em close do rosto do bailarino, brincalhonamente situado à frente de uma estátua de Buda com vários rostos que olham em diversas direções. A ação de “bater cabeça” aprendida nas técnicas de dança é transformada em analogia à “visão do todo” atribuída às divindades. A presença da estátua de Buda, única alteridade visível em todo o estudo, aparece como um duplo do bailarino, um dos múltiplos virtuais que se contemplam de um ponto de vista interior-exterior.
Nesta seqüência, ainda, Deren manipula o ritmo dos movimentos, com a alteração da quantidade de quadros por segundo capturados pela câmera. Esse jogo fala do que se passa no espaço do corpo em termos temporais. Utilizando um recurso que é próprio da arte do vídeo, Deren obtém um resultado eloqüente sobre a arte da dança.

Assim se formam essas unidades de espaço-tempo que caracterizam o movimento do bailarino. Não evoluindo no espaço comum, o seu tempo transforma o tempo objetivo dos relógios.
(...) O acontecimento, na dança, quer se trate de uma narrativa ou de uma dança abstrata, refere-se às transformações de regime do escoamento da energia, porque esta transformação de energia marca a passagem para um outro nível de sentido. O acontecimento é real, corporal, modificando a própria duração dos gestos do bailarino. (GIL, 2004, p. 54)
A série de “batidas de cabeça altera a percepção da passagem do tempo devido ao poder das repetições. Embora a ação seja a mesma, nós somos diferentes a cada vez que a presenciamos, e o fato de presenciarmos a mesma coisa de novo estando em um novo estado distorce a nossa percepção temporal. Acrescente-se a isso a vertigem proveniente da sensação de giro, e fica claro o sentido da modificação da relação de frames por segundo nessa imagem específica.
A quarta idéia experimentada é considerada a maior das realizações deste estudo. Não gratuitamente, foi escolhido para encerrar filme o tipo de movimento geralmente tido como o mais virtuosístico em dança: o salto. O bailarino executa um salto do tipo jeté (lançamento no espaço com impulso partindo de uma perna e chegando sobre a outra), que é filmado de baixo, ângulo que favorece a sensação de elevação. Na verdade, foram realizadas várias tomadas que são sobrepostas, em câmara lenta, resultando em um salto que se prolonga no espaço e que, do ponto de vista real da dança, seria de dificílima execução, pois o corpo do bailarino assume diferentes posições enquanto está no ar. Ele inicia lançando os dois braços à frente, com a cabeça pendida para trás, e passa-os pelo alto até abrir nas laterais (2ª posição). Ao mesmo tempo em que esse port-de-bras é executado, a imagem resultante sugere que o bailarino, tendo saltado para a frente, teria trocado o corpo para uma direção lateral no ar (fouetté), pousando, após esse feito fenomenal, em uma sólida, tranqüila e bem-acabada segunda posição en dehors.
Esse salto absurdo é o encerramento do discurso experimental de Maya Deren sobre a dança. Observando, porém, as considerações tecidas por Gil acerca do espaço do corpo, o que parecia mero delírio imagético da diretora revela-se como tradução visual, realizada com genialidade, de um conceito filosófico em dança. Gil afirma que o próprio corpo, secretando seu interior para o exterior, torna-se espaço enquanto dança:

O bailarino não atravessa o espaço do corpo como atravessaria uma distância objetiva, num tempo cronológico dado. Produz ao dançar unidades de espaço-tempo singulares e indissolúveis que transmitem toda a sua força de verdade a metáforas como “uma lentidão dilatada”, ou “o alargamento brusco do espaço” que descrevem certos gestos do bailarino. (2004, p. 54-55)
Em seu pouso final, o bailarino chega a um “equilíbrio de luxo ”. Seu corpo transmite a sensação de amplitude, utilizando uma posição ereta e lateralmente alargada para ilustrar o espaço do corpo. A 3ª dimensão, da profundidade, é conferida nessa tomada pela escolha do espaço exterior, aberto e elevado. A mensagem final mostra um corpo que se percebe superior e dilatado ao realizar o seu encontro com a dança.

Enfim...

Apesar do texto de Gil só ter surgido em 2002, pode-se encontrar uma impressionante aproximação entre as suas proposições e as imagens criadas por Maya Deren. Alguns trechos do “Corpo Paradoxal” parecem ter inspirado diretamente a montagem de “A study...”. Descartando essa hipótese, de cronologia impossível, é necessário admitir que a combinação conhecimentos sobre cinema e dança realizada por Deren resultou em um estudo brilhante. Através da mídia filmada, esta pioneira conseguiu fazer uma exposição filosófica da dança. A hibridação entre as artes da dança e do vídeo não poderia ter sido mais bem inaugurada.

Referências bibliográficas:


BARBA, Eugenio, and SAVARESE, Nicola. A dictionary of theatre anthropology. London: Routledge, 2006. 2nd. ed.

GIL, José. Movimento Total. São Paulo: Iluminuras, 2004.
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Friday, June 22, 2007

Videodança – espetáculo de dança em vídeo?


A videodança e o bailarino

Um espetáculo se instaura por intenção de um artista e presença de um (ou mais de um) espectador.

A dança, por ser um conceito abstrato, pressupõe um corpo ou corpos que a dancem. A dança é uma arte visual, espacial e temporal.

As imagens da dança podem ser capturadas em vídeo, e isso tem acontecido desde muito cedo desde o desenvolvimento das técnicas de seqüenciamento animado de fotografias. Como ferramenta de captura e armazenamento das imagens da dança, o vídeo é bem aceito e compreendido. Trata-se de um instrumento de registro, útil para aulas, improvisos, laboratórios coreográficos, espetáculos.

Além dos registros, uma nova gama de relações entre vídeo e dança tem sido descoberta e ao mesmo tempo criada. Descoberta, porque a sua possibilidade passou a existir desde o instante em que, havendo dança, houve também vídeo, e essas relações que não “foram”, mas “estão sendo” encontradas. Criada, porque as técnicas para estabelecer essas relações estão em desenvolvimento; são uma prática “in progress”, com meios e produtos em processo de invenção. A videodança é uma obra híbrida que necessita de criadores, intérpretes e realizadores, e que tem tentado firmar sua identidade enquanto gênero e enquanto resultado de um legítimo fazer artístico. É necessário promover estudos críticos que teorizem e reflitam sobre esse fazer e seus resultados para investigar as diversas implicações (estéticas, tecnológicas, culturais...) dessa hibridação.

A videodança propõe uma alteração nas concepções até então conhecidas a respeito do conceito abstrato dança. Talvez essa razão explique algumas das resistências à sua aceitação encontradas, por exemplo, entre a comunidade de dança. A própria fisicalidade, que é percebida e trabalhada pelo bailarino como o específico da dança, passa de uma importância absoluta a uma importância relativa, visto que as características espaciais e temporais da dança são modificadas na obra de videodança.

Na videodança, o tempo da dança torna-se dois tempos distintos e simultâneos: o tempo em que a imagem foi capturada e o tempo em que está acontecendo a reprodução da imagem. A execução da dança não está sujeita a modificações ou imprevistos, como ocorre com o espetáculo ao vivo. Ela não está atrelada à vida do bailarino, e independe da presença dele. Além disso, aceleração das imagens ou câmera lenta podem interferir no curso temporal dos movimentos. A ordem de execução de movimentos pode ser completamente alterada, entrar em loop, ser revertida ou simular timings não praticáveis para um corpo humano treinado em qualquer técnica.

Também o espaço tridimensional euclidiano, onde caracteristicamente a dança real acontece, aparece na videodança necessariamente descaracterizado pela projeção em um plano bidimensional e pelo recorte realizado pela câmera. A lei da gravidade e demais leis da física podem ser ultrajadas por meio dos recursos de captura de imagens e de montagem. Os corpos humanos podem ser mostrados em situações impossíveis no mundo concreto. O bailarino se vê em lugares e ações que não reconhece, e a dança não está mais no corpo, mas nos arquivos de imagem que mostram, conformam e deformam aquele corpo.

O resultado expressivo da obra de videodança é outra dimensão em que a contribuição do bailarino torna-se relativa. Por mais perfeitos e expressivos que sejam os movimentos realizados (e certamente a qualidade da videodança será superior se os movimentos tiverem grande clareza de expressão), o resultado expressivo que sobressai na obra em vídeo é fruto da perícia da montagem. Uma boa montagem tem o poder de manipular as respostas psicológicas do espectador e pode conferir às imagens do bailarino quaisquer diferentes conotações. Aqui, diferentemente da apresentação diante do público em tempo real, o bailarino não tem o controle sobre a dimensão expressiva da dança.

Em vista de todos esses aspectos, levantam-se uma série de questões. Como avaliar o papel do bailarino, intérprete da dança, nesse tipo de obra de dança que prescinde da sua presença física em cada reapresentação? Como a realização de uma obra de videodança altera a relação do bailarino com a própria dança, uma vez que, na filmagem, o bailarino normalmente não executa toda uma coreografia em uma única tomada, mas repete diversas vezes pequenos trechos coreográficos? Como o bailarino se relaciona com a câmera? Como se sente com a não-presença de público para assisti-lo dançando? Como o bailarino se relaciona com a sua imagem gravada, manipulada e fixada em um resultado que pouco se parece com o que ele efetivamente realizou?

Friday, February 02, 2007

Curso Ballet na Contemporaneidade com Silvia Wolff / parte 2 - considerações técnicas


No post anterior fiz minhas considerações gerais sobre o curso, e descrevi as atividades de apreciação e composição desenvolvidas. Aquele texto ficaria muito longo se acrescentasse também algumas descrições sobre a parte de técnica e execução, mas não quero deixar de fazê-lo. A maior parte das atividades do curso foi dedicada às aulas práticas de técnica de ballet. Neste texto, faço o registro das características enfatizadas em alguns dos passos típicos da aula de ballet (e creio que sejam muito interessantes, para aqueles poucos que apreciam aprofundar-se nos detalhes técnicos de ensino e execução deste estilo de dança). Estas são características da Escola Americana, que pode ser considerada uma escola contemporânea de ballet, como foram apresentadas pela Sílvia.

Dinâmicas:
  • Tendus com acento duplo, fora e dentro. O acento musical é marcado para dentro, mas mesmo quando feitos rápidos, há uma clara definição do tendu para fora.
  • Jetés muito rápidos. Esta dinâmica trabalha os músculos internos (adutores) da coxa. A rapidez é tanta que não se chega, às vezes, a atingir a exrtensão total do pé, e estes jetés são feitos com pouca altura.
  • Ronds de jambe par terre sem acento. As ronds também são rápidas, o que não permite haver a marcação dos pontos à frente, ao lado ou atrás. Não há uma preocupação com o cruzamento da perna na frente ou atrás, e também não há um acento na diagonal da frente ou de trás.
  • Os Frappés simples são muito rápidos, e são feitos sempre com strike no chão, exigindo o trabalho dos pés e a coordenação.
Outras características gerais presentes nas aulas:
  • O início das aulas é a execução de pliés e grands pliés, sempre principiando pela segunda posição, alternados com alongamentos de tronco.
  • O 2º exercício das aulas continha alguns trabalhos de rotação coxo-fen=moral, flexões dos pés e alongamentos em 6ª posição.
  • O aquecimento e detalhamento dos pés também foi muito trabalhado em relevés lents com o pé flexionado, terminando em tendus ao demi plié. Esses movimentos enfatizam o arco realizado pela perna com suavidade.
  • Há muita ênfase no trabalho fino dos pés, como nos exercícios para os dedos em tendus rápidos, e também ênfase no trabalho de arcos rápidos como ronds e demi-ronds com soutenu. Os exercícios também são combinados com muitas trocas de peso, alternando a perna de base.
  • A perna de base foi enfatizada em sua importância, por ser a receptora do peso do corpo. Em Balances, foi enfatizada a consciência do pedo sobre a perna de base, criando um vetor de força contra o chão para criar a elevação do tronco.
  • São muito utilizados os Enveloppés com demi-plié, rápidos e em ângulos baixos, fazendo círculos com o pé e com atenção no detalhamento da chegada do pé de volta à 5ª posição. Esses exercícios que exigem passadas rápidas da planta dos pés pelo chão desenvolvem a noção de contato com o chão, firmam a base e fortalecem a musculatura do arco do pé.
  • Fondus: muita atenção é dada ao cruzamento do cou-de-pied. Em fondus com pernas mais altas, passa-se por passé e developpé; não é feita a abertura direta do ângulo de cou-de-pied à perna alta. A perna de trabalho não abre em uma linha reta, mas faz um arco, ao aprofundar o cruzamento do cou-de-pied e delizar suavemente até a posição aberta.
  • Grands battements: fizemos um exercício interessante para a liberação da articulação coxo-femoral. Os dedos da perna de trabalho marcam uma batida no chão (com o joelho dobrado) cruzada à frente e outra batida cruzada atrás da perna de base, antes de fazer um developpé muito rápido e alto ao lado, repetidas vezes. /também foram feitos grands battements em cloche, em attitude, coordenados com um trabalho de soltura (pendulação) do braço.
Algumas características do trabalho de centro:
  • O exercício inicial é uma combinação de tendus com muita alternância de pernas.
  • Sempre há um exercício para treinamento de pirouettes de 5ª posição, rápidas. Algumas das dicas relativas à execução de pirouettes foram: não abrir o braço correspondente à direção do giro, mas utilizar o impulso forte do braço que fecha. Buscar a mudança rápida da cabeça e o passé rente à perna. Usar o vetor de força contra o chão.
  • Em pirouettes en dehors partindo de 4ª posição, o peso fica todo sobre a perna da frente, e a perna de trás é esticada, sendo apenas flexionada rapidamente no momento de arranque da pirouette. O braço da frente também é preparado alongado, e não abre antes do giro. O braço que fecha é que traz o impulso para o tronco.
  • Em saltos, os passos intermediários são apenas passagens para gerar impulsos. Não é necessário ter tanta preocupação com a sua forma. A perna de impulso do salto é a mais importante, e novamente deve -se estar atento ao vetor de força.
  • Em Jetés e Assemblés, logo é buscado o cruzamento ou união das pernas.
  • Em Changements, o acento localiza-se em uma troca rápida dos pés. A 5ª que é mostrada no ar não é o cruzamento origem, mas o de chegada.
  • Os Pas-de-bourrée depois de arabesques iniciam por relevés e não por demi-pliés na perna de base.
  • Foi enfatizado o uso do foco durante os exercícios do centro. O olhar deve ter definição e participar da movimentação. Essa dica faz muito sentido e muda a atitude do bailarino, considerando-se especialmente o espaço onde ocorreram as aulas, que não possuía espelhos.
Finalmente, algumas dicas que foram correções importantes para o meu desempenho individual:
  • Buscar o relaxamento do arco do pé no chão, especialmente em ronds e cloches, e principalmente o pé esquerdo.
  • Em arabesque penchée, o peso deve ser colocado mais sobre a ponta do pé de base, e não sobre o calcanhar.
Outra informação que considerei relevante foi a menção a uma pesquisa sobre o ponto de balance. A idéia é a projeção de uma sombra desde o quadril até o chão: segundo essa pesquisa, dentro de toda essa área há possibilidade de se encontrar equilíbrio, e não apenas sobre um único ponto de eixo vertical. Isso relativiza a suposta "rigidez" do balance, possibilitando a aceitação de um equilíbrio ativo. É a introdução de novas idéias como essa que legitimiza a continuidade do ballet como forma de arte na contemporaneidade, avançando além dos limites anteriormente estabelecidos e podendo ser ainda reinventado.
Mais uma vez, e por todos os motivos anteriormente citados, reitero o valor desse curso, e lamento o pequeno número de participantes (apenas 4). Embora essa quantidade de alunas tenha proporcionado a dedicação personalizada de atenção pela professora a cada uma de nós, é uma pena haver poucos interessados, ou poucos interessados com oportunidade de realmente frequentar essas aulas e contribuir na ampliação e diversificação das discussões.

Curso Ballet na Contemporaneidade com Sílvia Wolff / parte 1 - considerações gerais


No período de 8 a 12 de janeiro de 2007, tive a oportunidade de frequentar mais um excelente curso de dança. Este curso foi oferecido como atividade de extensão no Departamento de Arte Dramática da UFRGS com o título de Ballet na Contemporaneidade. Tudo a ver comigo e com o que tenho estudado! Acho que eu não faria um curso de Ballet Clássico, nesses dias, se não tivesse um apelo muito especial, e essa proposta de falar sobre o ballet como ele está sendo compreendido e trabalhado dentro da atualidade da dança era o que eu precisava. Sílvia, a professora, já era minha conhecida de muitos anos, embora não muito próxima. Informada sobre a trajetória dela, confiei que tivesse bastante a oferecer, e não me decepcionei em nenhum momento.
Este foi um curso abrangente, no que concerne ao estudo de uma forma de arte. Eu sempre volto a considerar SWANWICK* e seu modelo pedagógico para a educação musical, cuja pertinência estendo às outras pedagogias da arte: o modelo tEClA. Técnica, Execução, Composição, Literatura e Apreciação. As letras minúsculas na sigla (em inglês é ClAsP, composition, literature, appreciation, skills, practice) significam que aquelas são as atividades secundárias, enquanto as mais importantes, Execução, Apreciação e Composição, são escritas em maiúsculas.
Essas três instâncias práticas foram abordadas no curso, o que comprova a visão contemporânea sobre um curso de Ballet, porque as aulas tradicionais costumam contemplar quase exclusivamente técnica e execução. Neste curso, a maior parte do tempo foi realmente ocupada com técnica e execução, mas existiram os outros momentos também, e todos foram ricos em informações e experiências importantes. Houve espaço para debate e questionamento, coisas que a aula de ballet clássico tradicional e historicista não fomenta. Alguns professores até mesmo reprimem quando os alunos questionam coisas que possam "abalar os pilares tradicionais" como o significado de certos movimentos coreográficos e a possibilidade de executar certos passos com diferentes graus de tensão muscular. Na tradição clássica, alunos não falavam. O professor era sempre considerado um mestre (maître de ballet) e suas orientações eram inquestionáveis. O modelo pedagógico era impositivo e autoritário; autonomia por parte dos alunos não era uma possibilidade.
A aula iniciava seguindo a estrutura tradicional: exercícios na barra, seguidos por exercícios no centro. A música utilizada foram CDs (devido à não existência de piano e, certamente, aos altos custos implicados ao contratar-se um pianista acompanhador). Os três primeiros dias decorreram assim, com a execução dos princípios técnicos e inovações sobre a técnica tradicional provenientes principalmente da Escola Americana de ballet, que é uma escola tardia, estabelecida no séc. XX, muito depois das Escolas tradicionais.
No 4º e 5º dias do curso, tivemos momentos dedicados à apreciação. Assistimos gravações em DVD de William Forsythe e sua esposa em seus trabalhos de improvisação, da bailarina Darcey Bussel ensaiando e dançando coreografias de Forsythe, de coreografias de Mark Morris (para as estrelas masculinas de uma importante companhia norte-americana de ballet), de Jiři Kilian, de Matts Ek e do trabalho que a própria Sílvia faz com Luiz Bongiovanni em são Paulo, utilizando as técnicas de composição por tarefas desenvolvidas por Forsythe. Todas essas filmagens foram escolhidas porque mostram trabalhos de coreógrafos que criam dança contemporânea a partir do vocabulário clássico, ou para corpos treinados em ballet, introduzindo inovações estéticas e expandindo as fronteiras da técnica tradicional, tema que a silvia tem estudado em seu mestrado e agora em seu doutorado. Discutimos sobre as características dos movimentos e sobre as escolhas estéticas dos diversos coreógrafos. Algumas peças valorizam o movimento abstrato, os jogos formais entre solos e grupos de bailarinos. Em alguns casos, há o culto do virtuosismo; em outros, têm destaque a teatralidade, a cenografia e a iluminação, a dramaturgia do movimento. as relações com a música também puderam ser observadas em manifestações contrastantes, tendo algumas composições um relação literal, conferindo à música um poder hierárquico quase ditatorial sobre a coreografia, enquanto outras se emanciparam dessa hierarquia, chegando a reservar à música o papel de faixa ou ambientação sonora.
No 5º dia, fizemos também uma atividade de composição. a professora expôs um pouco mais sobre o método de improvisação por tarefas desenvolvido por Forsythe. Os bailarinos recebem alguns elementos (que incluem figuras geométricas, símbolos gráficos como letras e pontos e outras instruções de caráter formal) e pesquisam maneiras de transformar esses elementos em movimentos em quaiquer partes do corpo e em infinitas possibilidades espaciais. Para a nossa tarefa, recebemos os seguintes elementos:

. ___ MSR S

Sendo: círculo; ponto; linha; match, slide, rotate**; letra S (ou outra letra, como a inicial de cada bailarina)
Trabalhamos com esses elementos por algum tempo, terminando por estabelecer uma pequena composição individual. Não era necessário seguir essa ordem específica para ordenar os elementos, e também se poderia repetir ou estabelecer outras transformações em sua forma. Cada aluma mostrou sua sequência, e a professora deu sugestões para enriquecer a composição, trazendo outros conceitos como o "colapso de pontos" (quando um ponto indicado por uma parte do corpo no espaço cai abruptamenteté o chão), a "abreviação" (manipulação rítmica do movimento, tornando-o mais rápido) e a "manipulação de partes do corpo" (uma parte do corpo, geralmente as mãos, conduz as demais partes). Observamos as composições de cada aluna e pudemos analisar as diferentes idéias e propostas surgidas devido aos diferentes backgrounds corporais. Discutimos conceitos como foco, monocordia e contraste, e a necessidade de encontrar, diferentes soluções para estabelecer a ligação entre um elemento e outro.
Devido a todas essas experiências, avalio este curso como muito bom e completo em termos de prática de dança. Talvez o ganho mais significativo tenha sido o estabelecimento de relações entre a dança como treinamento físico e como forma de arte, que me parece pouco discutido nos cursos e oficinas de dança em geral. A maior parte dos cursos destinados à formação do bailarino tratam enfaticamente das técnicas corporais mas não estabelecem essa ligação com a dança como produto artístico que desemboca em uma concepção cênica formatada a partir de escolhas que, além das capacidades físicas do bailarino, implicam em convicções estéticas, filosóficas, políticas, históricas...

* Keith Swanwick, educador musical inglês, cuja obra tem servido de referencial teórico para a pesquisa em educação musical em diversos países, incluindo o Brasil.

** MSR é um procedimento compositivo frequente na técnica de improvisação de Forsythe, onde se estabelecem com quaisquer partes do corpo duas linhas paralelas (match) que em seguida são deslocadas uma em relação à outra em um movimento de deslizamento (slide) e de rotação (rotate), deixando então de ser paralelas.


Friday, September 15, 2006

Workshop com Lutz Förster - relato de experiência


Entre 11 e 15 de setembro de 2006, tive a oportunidade de freqüentar um workshop de dança contemporânea com Lutz Förster, um fantástico professor da Folkwang Hochschule de Essen, Alemanha, que é também bailarino de Pina Bausch Wuppertal Tanztheater.

Nesta foto, que está no site da Companhia, ele aparece bem mais jovem. Aos 52 anos (segundo meus cálculos), conhecemos este bailarino, primeiro no palco nas apresentações do Porto Alegre em Cena, e depois em sala de aula demonstrando, contando, exigindo, solicitando, corrigindo e contribuindo para a nossa cultura, a nossa formação, a nossa percepção. Eu me apropriei sem culpa dessa imagem para ilustrar aqui as feições dele, baseando-me no pressuposto que, se uma foto está em um site público e não está protegida contra cópias, não é inadequado reproduzi-la.

A experiência deste workshop foi fascinante por várias razões. O conteúdo proposto foi o trabalho físico de preparação técnica do bailarino para a dança contemporânea. Os princípios que regem os movimentos trabalhados pertencem a uma longa tradição que provém dos grandes nomes da dança alemã, como Laban e Kurt Joos. Além de serem cientificamente fundamentados, anatomicamente adequados, rítmica e energeticamente variados, os movimentos são de grande beleza e auxiliam na construção de um corpo versátil e inteligente para a dança. O professor tem vasta experiência, muito conhecimento, clareza e mais uma série de qualidades que o tornam um excelente condutor de classe, como domínio, bom humor, musicalidade apurada, rigor e um olho para os detalhes que diferenciam a perfeição da imperfeição na execução dos movimentos. Todas as aulas contaram com um músico acompanhante, munido de diversos instrumentos de percussão que incluíam um prato, um cajón metálico tocado com escovas, um carrilhão e um carrilhão de chaves, um chocalho de conchas, um berimbau, um agogô, um pandeiro, e provavelmente outros instrumentos nos quais eu não reparei... As aulas duravam duas horas e aconteciam em uma sala ampla, com linóleo, espelhos e barras fixas e móveis. Havia espaço suficiente para os muitos participantes, e possibilidade de acomodação para diversos ouvintes que vinham todos os dias conhecer e prestigiar esse evento tão significativo para a dança em Porto Alegre. O único defeito nessa sala era o chão de piso duro, sem a flexibilidade necessária para amortecer as quedas, especialmente nos saltos. Para manter a saúde dos pés, dos joelhos e da coluna, um bailarino não deve trabalhar constantemente sobre um piso desse tipo, mas como o curso durou apenas uma semana, certamente as vantagens superaram em muito esse probleminha estrutural.

Desde o princípio, quando o workshop foi anunciado, foi possível perceber a seriedade e o empenho dos produtores em realizar um evento significativo e com alto nível de qualidade. Para que todos os participantes tivessem um bom aproveitamento e para tornar possível o trabalho do professor, foi realizada previamente uma aula-audição, onde os interessados em freqüentar as aulas foram observados por alguns bailarinos e professores, e foram selecionadas aquelas pessoas que demonstraram melhor a capacidade de, naquele momento, compreender e aproveitar o curso. Tudo foi arranjado com a devida antecedência, e os bailarinos selecionados foram solicitados a confirmar sua participação desde que tivessem realmente a disponibilidade de freqüentar todos os dias do curso e de permanecer durante todas as horas-aula previstas. É claro que, no decorrer da semana, houve uma pequena flutuação diária entre os participantes, devido a diversos imprevistos que podem ocorrer, mas basicamente a freqüência dos alunos se manteve do início ao fim do curso. Também existiram pessoas que participaram devido a outros arranjos e indicações, sem ter participado da aula-audição, mas isso de forma alguma interferiu no aproveitamento de todos os participantes.

Para nós, bailarinos de Porto Alegre e arredores (vieram alunos de outras cidades também) foram muitas as lições aprendidas. O aporte de informação foi tanto que, na verdade acredito que ainda não conseguimos digerir e assimilar tudo. O trabalho físico foi estimulante e extenuante. O professor, muito exigente quanto à qualidade e à precisão musical, obteve de todos concentração e muito empenho. Algumas pessoas sofreram com a dificuldade lingüística, por não entenderem o inglês, apesar da colega que fazia a tradução do que o professor dizia. Infelizmente, essas pessoas perderam o “colorido” da fala do professor, que fazia muitas comparações e comentários humorosos para ajudar a passar as idéias que sustentam e justificam os movimentos. O professor fez muitas referências à teoria que explica os exercícios, como a análise de movimentos de Laban, as qualidades rítmicas, as questões físicas como resistência, peso, ondulações, pêndulos... Como parte de sua didática, lançava muitas perguntas aos alunos, o que exigia que todos pensassem para tentar encontrar as respostas e as razões de se fazer os movimentos de determinadas maneiras. Quando a execução estava muito aquém do esperado, mesmo para uma turma iniciante, ele não hesitava em interromper tudo, mostrar novamente, explicar novamente e exigir mais apuro na execução. Muitas vezes ele passava sutilmente e colocava o corpo de um aluno um pouco mais pra cá ou pra lá, sacudia para verificar o excesso de tensão, ajeitava a postura, etc. Outras vezes, ele parava tudo e ficava insistindo com uma pessoa até que ela chegasse mais perto do movimento proposto. Essa última observação aconteceu mais vezes com os participantes homens.

Uma característica muito marcante deste professor é a sua capacidade (e a autoconsciência que ele possui dessa capacidade) de transmitir informações por meio de pura expressão corporal, vocal e sonora. Em muitos momentos ele se poupava de falar, fazendo apenas gestos, expressões ou posturas tão expressivas que comunicavam suas intenções, correções, censuras e comandos de classe. A qualidade dos movimentos era muitas vezes exemplificada por meio de entonações vocais. E o sinal musical para iniciar as aulas era simplesmente sutil, gentil e genial. Ele solicitava ao músico que fizesse soar algumas vezes (que foram diminuindo; ao final da semana, não eram necessários mais de quatro toques) um som metálico espaçado como um sino ou um relógio, e isso era suficiente para que todos encerrassem as suas conversas e alongamentos no chão e se levantassem, em silêncio, para iniciar a aula. Esta maneira elegante de iniciar é apenas um exemplo que ilustra a dignidade, o cavalheirismo e a segurança com que este senhor conduzia as suas aulas.

A distribuição das pessoas no espaço também era feita com propriedade. No centro, os alunos eram geralmente divididos em dois grupos, para que todos tivessem mais espaço e para que fosse mais possível observar todos os alunos. Dependendo da movimentação, os alunos podiam ser organizados também em filas ou colunas. Muitas vezes, especialmente em movimentos de saltos, apenas os homens eram solicitados a repetir mais vezes os exercícios, a exemplo do que ocorre com freqüência em aulas de ballet clássico. (Literalmente: abrindo parênteses. Esse tipo de condução, embora muito tradicional, não chegava a tirar a contemporaneidade do trabalho. Há tradições que precisam ser rompidas, e acertadamente buscam-se novas alternativas de trabalho; outras não incomodam e funcionam bem, e por isso elas podem ser mantidas. Talvez isso também sirva para mostrar, para os adeptos da ultra-hiper-super contemporaneidade, que não é preciso liberar geral e aceitar qualquer postura, qualquer ocupação do espaço e qualquer estrutura de aula para poder afirmar que se está trabalhando “dança contemporânea”).

A dosagem do trabalho durante a aula tinha equilíbrio, partindo de um aquecimento em uma seqüência crescente na barra, intercalando exercícios vigorosos com outros mais suaves. O centro iniciava novamente com algo mais suave e ia crescendo, até chegar aos saltos ou a deslocamentos diversos que exigiam muita força ou uma energia em alta rotação. Para encerrar a aula, sempre havia uma movimentação menos vigorosa, muitas vezes agregando uma dimensão mais expressiva e lúdica, com o grupo todo participando ao mesmo tempo.

Terminamos a semana com muito entusiasmo pelo trabalho. Todos perceberam que aprenderam muito, não só pelo trabalho físico em si, que foi intenso e cheio de desafios, mas também pela dedicação profissional do professor, que generosamente compartilhou conosco a sua forma de trabalhar e soube obter, deste grupo (como certamente ele obtém de todos os grupos com que trabalha), o melhor que essas pessoas poderiam ter conseguido nesta única semana específica, neste momento de suas vidas.

Bailarinos gostam de trabalho duro; bailarinos adoram professores, diretores e maestros exigentes, que propõem desafios, que os puxam e os estimulam e ir mais além do cômodo; bailarinos ficam doloridos com prazer ao repetir indefinidamente uma movimentação difícil, quando eles sentem que estão sendo exigidos para o melhor; e acima de tudo, bailarinos AMAM se matar de trabalhar diante de uma pessoa que respeita, perpetua e multiplica a arte e a excelência da dança.

Observações adicionais e um tanto mais pessoais: à medida que as horas vão passando, e que o workshop lentamente vai se tornando um fato distanciado em um tempo passado, continuo refletindo muito, não só sobre a carreira profissional em dança, como também sobre a minha trajetória particular, sobre as oportunidades que tive e que não tive, sobre a inteligência que apliquei e que deixei de aplicar em meus diversos estudos e experiências, e muitos outros etcetras. Uma das idéias posteriores que está me ocorrendo, como uma ficha retardatária que cai, diz respeito ao ofício de professor, tema que tanto me interessa e ao qual inúmeras vezes retorno... Percebo claramente que ser professor é uma ocupação totalmente relacionada a um COMO, mais do que a um O QUÊ. Sim, o professor tem que ser um grande aprendiz, sim, tem que haver acumulado muito conhecimento, e todas as outras competências. Mas o mais relevante é o como. Como ele faz para ensinar. Como ele faz para ser professor. Como ele se relaciona e se comunica com as pessoas. Como ele escolhe, como ele comanda, como ele exige de si mesmo.

Eu não disse nada novo, eu sei. Mas para mim aconteceu mais um momento de revelação, e tentei expressá-lo. Infelizmente, as palavras velhas e frias não vêm com "AWE" - espanto, encanto, maravilha. Continuo com a certeza de que estou absorvendo sabedoria por ter passado uma semana estudando com um representante do velho mundo. Percebi-me latina, submundana, tosca, renegada. Não é um ataque terceiro-mundista de idolatria, é a minha análise dos aspectos antropológicos e sócio-culturais desse encontro. É por isso que, durante toda a semana, eu estava com uma sensação de que eu não estava dando conta de absorver tudo o que estava se passando. É que algumas revelações são difíceis de admitir. Foi lindo e foi trágico. Agora desejo avançar e continuar a construir, ainda, uma história profissional consistente para a minha vida. E espero nunca me perder dessa capacidade de discernimento, que é um tesouro que tenho me esfoçado por conquistar.

Friday, June 16, 2006

Participação da turma de contemporâneo no Encontro Meme de Arte Experimental




Nesta quarta-feira, 14 de junho de 2006, aconteceu o 2º dia do Encontro Meme de Arte Experimental. Nesse dia, vários artistas (bailarinos, coreógrafos, músicos, atores, performers, artistas visuais, fotógrafos e outros assemelhados) foram convidados e reuniram-se no Teatro Renascença para mostrar seus trabalhos e também para fazer "experimentos em tempo real".
Eu fui convidada na qualidade de pesquisadora/criadora, e levei 14 pessoas da turma de contemporâneo do Domus para que eles mostrassem em cena o que temos trabalhado até agora, em uma montagem que estamos realizando para este ano. Compareceram os seguintes alunos: Priscilla, Manuela, César, Rafael, Everton, Melina, Gabrielle, Gabriela, Karine, Nicole, Sharon, Bianca, Bibiana, Cibele. Além desses, a Juliana foi como convidada para apresentar o solo coreografado pela Priscilla, e a Vanessa, para apresentar seu duo com o Rafa, esses dois trabalhos na qualidade de intervenções em espaço alternativo (no saguão do teatro). Infelizmente, por modificações na estrutura do evento, esses dois trabalhos não foram apresentados, pois os bailarinos sentiram que o público iria dispersar devido ao adiantado do horário. Descontando essa ocorrência, tudo indica que a oportunidade foi de muita riqueza e crescimento para os artistas e público envolvidos.
Para o pessoal que veio de Novo Hamburgo, foram muitas aventuras, iniciando pela organização dos carros para a "viagem" e a descoberta do percurso até o Teatro, que não é tão simplesinho de chegar, especialmente na hora do pique no trânsito que eles pegaram. Chegando ao teatro, outra aventura: nosso camarim ficava no andar superior, com acesso por uma escada semelhante às de incêndio. As meninas de bota e saltão passaram algum trabalho...
O trabalho que apresentamos está bem incipiente em seu processo. Há algumas estruturas marcadas, inclusive em música. Há outras estruturas muito abertas, que eles devem percorrer qundo os encontros acontecem. Há muito espaço para improviso e, como eu sempre digo, para ser preenchido com a PRESENÇA dos bailarinos. Acho que isso é um dos meus maiores objetivos, na qualidade de professora, a atingir com essa turma neste momento. Eles têm bastante técnica corporal e bastante expressividade também, mas essas condições ainda estão muito condicionadas às coreografias marcadas e ensaiadas à exaustão, onde todos já sabem tudo o que deve acontecer. A idéia aqui foi quebrar essa "segurança" da coreografia pronta, e jogar para eles a responsabilidade de preencher o trabalho com os seus corpos, os seus movimentos, os seus sentimentos e a sua capacidade de tomar decisões em cena.
No ensaio que fizemos no palco, não gostei do resultado. Achei os bailarinos distantes, tímidos, inseguros. Em geral, o trabalho aconteceu muito no fundo do palco (este palco é bastante profundo), com muitos momentos de costas e com algumas caras de susto. Essa foi uma orientação que passei para eles depois dessa passagem de palco: pedi interação com a platéia, relação com a platéia. Pedi que usassem mais a frente do palco e que procurassem perceber e integrar-se com o público. Eles perguntaram o que significava isso, se podiam sair do palco, falar, olhar para o público, etc. Eu disse que tudo podia...
No final da primeira apresentação da noite, aconteceu um fato muito notável. Como haviam ficado muitos pingos de cera no chão, e havia umas fitas a serem retiradas, a Marisa entrou tocando (acho que DARBAK) e o pessoal do Meme começou a dançar e retirar esses elementos do palco. Em determinado momento, o Laco falou aos bailarinos que estavam ali por perto que eles poderiam entrar também em cena, dançar e ajudar a limpar o palco. Pois bem, os três meninos de Novo Hamburgo foram em frente, e bem felizes. Eu adorei a manifestação, e fiquei um pouco intrigada porque nenhuma das meninas teve o impulso suficiente para ir... Imagino que algumas tenham tido uma ponta de vontade, mas o que as impediu??? O que tranca as pessoas?? Que medos e vergonhas e rubores são esses? Não são anjos de mármore, então, porque não conseguem se deixar manifestar? Enfim, considerei a participação dos rapazes nesse momento um sucesso.
Quando chegou a hora do nosso trabalho (4ª apresentação da noite) fiz um experimento com um músico. Convidei Marcus, um saxofonista que estava participando de outros trabalhos, para entrar e tocar de improviso no início, quando o César faz um solo e ouve-se a poesia "Romaria" do Carlos Drummond de Andrade. Não gostei muito do resultado, porque achei que o sax tem um som muito intenso que mata um pouco o impacto da poesia. Acho que só a gravação do poema deixa a atmosfera inicial mais intimista, mas foi muito válida a experiência, pois assim nos integramos mais à proposta da experimentação e da intervenção de outros artistas.
O início feito pelo César foi bom. No ensaio ele estava ainda inseguro, mas conseguiu boa concentração quando realmente entrou em cena. Infelizmente a vela que trazia logo se apagou. Isso tem se constituido em um pequeno problema, esses nossos objetos cênicos. Usamos velas de sete dias, porque elas têm boa base e ficam firmes no chão, mas os pavios são muito finos e apagam com muita facilidade. Temos que rever as velas a utilizar.
Outra coisa que foi mexida nesse dia foi a entrada da procissão. Normalmente ensaiamos como se as pessoas entrassem de coxia, mas o teatro estava sem as coxias. Modifiquei a entrada, fazendo com que a procissão já viesse entrando durante o solo do César, percorrendo um caminho lateral até chegar na diagonal. Gostei desse resultado, vou tentar encontrar sempre uma solução assim, para dar melhor a idéia de que a procissão vem de longe. Quem faz tudo de joelhos vai sofrer um pouquinho, mas acho que isso faz parte exatamente da proposta, pois em procissões há gente disposta a fazer seu sofrimento expiar algumas culpas ou valer algumas graças... O pessoal ainda tem que se entregar muito mais à proposta temática do trabalho, e essa imersão deve partir da vinda da procissão. Eles têm que construir cada um o seu motivo de estar ali, a sua busca, e os seus significados espirituais. Esse é outro objetivo que espero alcançar a partir dessa experiência de proceso em cena. Acho que esse objetivo pertence um pouco à professora, que está tentando mostrar aos seus alunos um processo de composição em dança contemporânea, e um pouco à coreógrafa, que quer bailarinos instrumentalizados para responder às demandas da obra coreográfica. Nesse caso, o tema não é mesmo simples. Falar da religiosidade ou da espiritualidade requer uma investigação particular que talvez estes bailarinos nunca tenham feito, ou não tenham achado importante fazer. Estou solicitando que os bailarinos reflitam sobre o papel da espiritualidade nas suas vidas, e ainda preciso encontrar muitos outros recursos para suscitar esse tipo de reflexão neles, e para transformar essa reflexão em movimento e em cena. É desafio tanto para eles quanto para mim.
Achei que eles entraram ainda tímidos, mas que foram ganhando confiança com o desenrolar da apresentação. Nos momentos finais, gostei realmente do resultado que vi. Percebi com muita clareza o pessoal buscando o público; reconhecendo a presença do público e tentando uma relação com eles. Algumas pessoas vieram bem à boca de cena, houve quem saísse do palco e caminhasse entre a platéia, com uma vela. Houve olhares e passagens pela frente, inclusive de bailarinos que geralmente se escondem mais. Essa foi uma das vitórias da noite, e que me dixaram muito satisfeita com os resultados "didáticos" obtidos. A ocupação do espaço foi boa; os bailarinos souberam se distribuir com equilíbrio em cena, o que comprova que eles estavam tmabém conscientes da presença e do deslocamento dos colegas. Alguns interagiram entre si, o que é sempre interessante. Percebi que os improvisos partiram das estruturas de movimentos já trabalhadas, e que elas se abriam e se transformavam, dando espaço para uns poucos momentos de maior ousadia. Obviamente há muito mais a percorrer até que se possa afirmar que o pesoal adquiriu "técnica de improvisar", mas percebo que eles já estão entendendo o improviso como algo que tem seus requisitos para não ficar simplesmente uma grande incoerência, e estão começando a se movimentar dentro dessa compreensão.
O que percebi como necessidade para tornar o trabalho menos monótono é que temos que esclarecer os momentos em que certas pessoas ou grupos devem receber destaque, onde os outros devem se manifestar mais como fundo para conferir força às figuras principais. Preciso então pensar em maneiras de unificar mais o plano de fundo, ou seja, os bailarinos queformam a modura para que as cenas en destaque apareçam e possam ser lidas com mais clareza. se todos ficam em deslocamento o tempo todo, fica uma monocordia tediosa, e perde-se o interesse coreográfico.
Os figurinos são também uma incógnita. Achei bastante limpo utilizar as cores azul e branco. Os tipos de roupas que eles trouxeram não foram ainda todos adequados. Essa pesquisa eles terão que fazer com a composição dos estados, que está mesmo em fase inicial. A coreografia ainda não está tocando emocionalmente, e isso deverá evoluir. Estou bastante curiosa para ver os resultados que vão aparecer nas próximas vezes em que trabalharmos o nosso processo em sala de aula, e também para perguntar sobre as impressoões que eles absorveram dessa experiência.
Falando do evento de maneira geral, foi muito positivo, e inovador, pelo menos neste local e neste tempo. Não tenho visto este tipo de evento em nossos arredores. Alguns dos trabalhos apresentados estavam já com mais estrada, com muita estrutura pronta e mais formatados, enquanto a maioria foi realmente de cunho improvisatório e experimental. À medida que observavam os trabalhos, vi que alguns de meus alunos perceberam a criação de um fio condutor dentro dos improvisos, que os tornam coerentes e muito interessantes. Entre comentários que ouvi, achei interessante como eles perceberam os demais bailarinos do evento como muito "fortes" (querendo significar que as pessoas eram muito experientes e com muito domínio de cena). Foi muito importante também ver tantos homens em cena (que não é tão comum no cricuito de festivais estudantis que eles geralmente frequentam), ver o uso de recursos como a fala, a interação de músicos e bailarinos, o trabalho com tecido e também a atividade da artista que ficou trabalhando com argila durante as apresentações.
No final, os participantes foram chamados para uma conversa com o público. Infelizmente, eu (opinião realmente particular) não gostei da tônica dos debates neste dia. Ficou-se na discussão da formação de público para este tipo de trabalho, nos conceitos de "experimental" ou "contemporâneo", nas políticas públicas para incentivo a encontros de arte, na cobertura da mídia, na captação de verbas.... E não houve tempo para debater o que eu teria achado mais interessante, os processos diversos que foram apresentados. Talvez porque me interessa muito saber dos processos de outros artistas, como eles nascem e se desenvolvem, que recursos eles usam para chegar aos resultados de suas pesquisas, etc. Fiquei sentindo falta disso. E também fiquei chateada porque não foi feito nenhum intervalo, que seria o momento para as intervenções com os dois outros trabalhos que o pessoal de Novo Hamburgo pretendia apresentar. Como o debate já aconteceu um pouco tarde, os bailarinos perderam o clima, e desistiram de mostrar os trabalhos. Acho que teria sido muito válido, porque seria uma inversão da ordem normal das coisas. Os trabalhos experimentais foram apresentados dentro do teatro; os trabalhos que contavam com coreografias bem estruturadas seriam levadas para fora, e se tornariam, só por isso, experimentais também...
O balanço final foi muitíssimo positivo, e falo isso mais do ponto de vista da professora. Claro, as aulas foram suspensas nesse dia, mas penso que estes alunos que tiveram a oportunidade de comparecer tiveram uma aula/vivência maravilhosa. Alguns alunos comentaram que gostariam que esse tipo de evento acontecesse todo mês, e também que isso pudese ser realizado em Novo Hamburgo. Também ouvi comentários de que é muito bom ter a liberdade de fazer o que quiser em cena e mudar ou inventar à vontade. Claro, não se trata realmente de "fazer o que quiser", mas isso é o bom senso dos bailarinos que vai ensinando... e a técnica. É, sim, um exercício de liberdade dentro de uma arte, e os trabalhos apresentados no evento foram coerentes com esse princípio. Não aconteceu apenas "loucurada" total, nem resolução de "crises pessoais" em cena, como reclamam alguns críticos do trabalho experimental e improvisatório.
Feliz com os resultados alcançados, preocupada com a assimilação da experiência e com a continuidade dos processos (formativo e artístico), sigo tentando construir os meus papéis de artista e professora...


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O meu melhor papel nesta vida é o da aprendiz. Por isso o nome deste blog é apprenticeship, e provavelmente por isso gosto e quero fazer cada vez melhor o papel de professora. ..