(vide clip no final desta postagem)
“A Study in Choreography for Camera”, obra curta e experimental da cineasta Maya Deren combinando dança e vídeo, é um estudo fundamental para compreendermos a trajetória percorrida pelos registros de dança (desde os desenhos e litogravuras, passando pela fotografia e pela dança no cinema) até o estabelecimento do gênero videodança. Muitos são os méritos dessa obra. Realizada em 1945, reflete valores de uma época em que a dança, legitimando-se enquanto categoria artística, libertou-se da subordinação à música (daí a ausência de trilha sonora), e em que o corpo, veículo da dança, encontrava uma ressignificação nas esferas científicas, artísticas e sociais.
Maya Deren experimentou maneiras de fazer o filme falar sobre a dança, e suas soluções obtiveram resultados de maior alcance, talvez, do que ela própria tenha suspeitado. Abolindo quase que totalmente a frontalidade (essa condição só se estabelece no plano dos giros de cabeça), a dança mostrada não é feita para um espectador: o bailarino dança para si mesmo.
A combinação dos elementos de dança com os elementos de vídeo neste estudo resulta em uma montagem instigante; a cineasta elabora uma série de imagens provocativas em relação ao espaço onde o corpo está dançando. Os movimentos têm continuidade, mas o espaço se modifica. O que à primeira vista parece uma brincadeira divertida com as possibilidades de manipulação da imagem desdobra-se em questões que sugerem maior elaboração. Será que o plano panorâmico inicial, que reencontra o bailarino em quatro diferentes pontos da mesma mata, propõe uma ubiqüidade do ser dançante? Como entender os espaços abertos e fechados que se alternam, ligados apenas pela dança? O bailarino está dançando em todos esses lugares ou em lugar algum? A obra estará falando das sensações do corpo que dança?
Intencionalmente ou não, Maya Deren realizou um manifesto filosófico sobre a dança em forma de vídeo.
O corpo paradoxal
Sabe-se que o bailarino evolui num espaço próprio, diferente do espaço objetivo. Não se desloca no espaço, segrega, cria o espaço com o seu movimento. (GIL, 2004, p. 47)
É dessa forma que o filósofo português José Gil inicia o texto “O corpo paradoxal ”, onde introduz o conceito de espaço do corpo. Este espaço não é propriedade exclusiva do bailarino, sendo criado em situações de performance corporal (atores, esportistas, xamãs) e em qualquer situação onde ocorre investimento afetivo do corpo. Nessas situações, dá-se um efeito de prolongamento ou ampliação do espaço que rodeia o corpo, constituindo a ocupação de um novo espaço: o espaço do corpo. A partir da sua substância limítrofe, a pele, o corpo objetivo cria uma dilatação ou continuidade, como se o ar ou o espaço se recobrissem de “um invólucro semelhante à pele: o espaço do corpo é a pele que se prolonga no espaço, a pele tornada espaço”. (GIL, 2004, p. 47)
A formação desse espaço pode ser facilmente percebida quando utilizamos uma ferramenta ou quando dirigimos qualquer tipo de veículo. A pessoa que trabalha com uma câmera de filmagem, por exemplo, age como se seus limites corporais se ampliassem até a extensão da câmera, e passa a cuidar desse espaço prolongado que a câmera ocupa como se pertencesse ao seu próprio corpo. Também quando transportamos um objeto longo como uma escada, criamos um novo corpo virtual cuja forma ocupa contornos diferentes dos que habitualmente preenchemos. Se a escada bate em um obstáculo, às vezes reagimos como se tivéssemos golpeado nosso próprio corpo, podendo chegar a reproduzir sons ou expressões faciais como uma representação de dor (ainda que seja apenas uma dor moral – uma espécie de culpa por termos descuidado do nosso espaço do corpo).
No caso do bailarino, esse espaço é forjado sem a presença de outros objetos. Representado às vezes por uma esfera que circunda o corpo, e conceituado por Laban na forma de um icosaedro, o espaço do corpo é uma experiência real para o bailarino, “que se sente evoluir dentro de uma espécie de invólucro que suporta o movimento” (GIL, 2004, p. 48). Dentro desse espaço, o corpo se move sem enfrentar obstáculos e sem estar submetido a direções ou pontos de referência já fixados no espaço objetivo. Novos referentes são criados pelo corpo em seu interior, fazendo com que as direções exteriores submetam-se a eles, e não o contrário.
Para Gil, no espaço do corpo o bailarino multiplica-se em muitos corpos virtuais dentro de um meio que possibilita a maior fluência de movimentos. Ali ele sente-se dançar; acompanha o movimento de seu corpo contemplando-se a partir desses múltiplos pontos de vista que não estão apenas em seu espaço interior e também não estão no espaço objetivo. O espaço do corpo, composto de um “exterior intensivo”, possibilita essa percepção distendida do espaço (e do tempo) que o bailarino tem ao dançar.
O espaço do corpo em Maya Deren
As idéias de José Gil propiciam a realização de um aprofundamento da leitura das imagens criadas por Maya Deren. Os jogos espaciais propostos pela diretora encontram, nas palavras do filósofo, uma coerência que amplia a gama de significados da obra e enriquece a reflexão sobre o conhecimento em dança.
Para estruturar uma análise, podemos agrupar as seqüências de “A Study...” na conformação de quatro principais idéias experimentais propostas pela cineasta. Cada uma dessas idéias tem características próprias, mas todas elas discutem algum aspecto da relação do bailarino com o espaço do corpo criado pela dança.
A primeira idéia está contida na tomada panorâmica realizada em um ambiente externo cheio de árvores. O espaço é mostrado pela câmera como sendo uma unidade; porém, o aparecimento do mesmo bailarino em quatro pontos diferentes desse espaço contínuo introduz um elemento que abala a concepção ordinária que se tem sobre a presença de um corpo no espaço.
Segundo Gil, “um corpo isolado que começa a dançar povoa progressivamente o espaço de uma multiplicidade de corpos” (2004, p. 52). A multiplicação de corpos virtuais percebida pelo bailarino no espaço do corpo é assim revelada por meio de um engenhoso recurso de montagem visual. O corpo começa a mover-se e desdobrar-se em outros pontos de vista; o espaço do corpo começa a diferenciar-se do espaço exterior. Já a partir daqui começa a perder importância a concretude do espaço objetivo, pois o assunto passa a ser a dança que acontece dentro desse espaço do corpo.
A segunda idéia desenvolve-se a partir dessa mesma seqüência. A unidade espacial é quebrada, estabelecendo-se uma nova forma de unidade pela não interrupção da continuidade dos movimentos através de diferentes espaços.
Vários outros aspectos paradoxais do espaço do corpo manifestam-se claramente nos movimentos do bailarino: a ausência de limites internos enquanto, visto do exterior, é um espaço finito; o fato de a sua dimensão primeira ser a profundidade, uma profundidade topológica, não-perspectivista, de tal modo que misturando-se com o espaço objetivo, é suscetível de se dilatar, de se encolher, de se torcer, de se dispersar, de se abrir em folheados ou de se reunir num ponto único. (GIL, 2004, p. 52-53)
Da mata inicial, o bailarino passa a ser visto dançando dentro de uma sala e, a seguir, em um pátio. O espaço objetivo se encolhe e se alarga, mas nenhuma dessas condições parece afetar a amplitude da movimentação do bailarino. Percebe-se, no entanto, uma variação temporal: o ritmo é mais denso no espaço fechado, e acelerado no pátio. Essa seqüência corrobora com a idéia de que o filme não está falando do lugar objetivo em que esse corpo se encontra, mas do modo como o bailarino percebe o espaço do corpo a partir das variações rítmicas da dança. Quando ele se desloca de maneira lenta e cautelosa, é “como se” dançasse em um espaço mais restrito e povoado de alguma coisa; quando ele corre, salta e gira com rapidez e leveza, é “como se” atravessasse um espaço grande, plano e oco (certamente, não uma sala de estar nem uma floresta!).
Ainda assim, o filme evidencia que o espaço do corpo não é um espaço de delírio dentro do qual o bailarino perde a noção do espaço objetivo que o circunda; apesar de existir “como se” fosse outro lugar, esse espaço é virtual, pertence ao corpo que o cria e não está separado do todo objetivo ao seu redor.
O primeiro aspecto impressiona desde o início o espectador que olha o bailarino em cena (e sofre ao mesmo tempo um processo de devir-bailarino): todo o movimento do corpo ou saída do corpo transporta-o sem entraves através do espaço; nenhum obstáculo material, objeto ou parede, impede o seu trajeto que não termina em ponto real algum do espaço. Nenhum movimento acaba num lugar preciso da cena objetiva, como os limites do corpo do bailarino nunca proíbem os seus gestos de se prolongarem para além da pele. Há um infinito próprio do gesto dançado que só o espaço do corpo pode engendrar. (GIL, 2004, p.53)
A sala (ou as salas, pois são mostrados dois ambientes diferentes) está composta de obstáculos (móveis, quinas, paredes), mas estes não impedem os movimentos do bailarino. A imagem sugere que o bailarino dança em um espaço regido por outra viscosidade, outros vetores, outros limites que não os do espaço objetivo. Gil explica o espaço do corpo como resultado de uma espécie de reversão do espaço interior do corpo em direção ao exterior, proporcionando ao espaço exterior uma textura que é própria do espaço interno:
O corpo do bailarino já não tem que se deslocar como um objeto num espaço exterior, mas desdobra doravante os seus movimentos como se estes atravessassem um corpo (o seu meio natural). (2004, p. 49)
A terceira idéia explorada no filme é a série de giros filmada em close do rosto do bailarino, brincalhonamente situado à frente de uma estátua de Buda com vários rostos que olham em diversas direções. A ação de “bater cabeça” aprendida nas técnicas de dança é transformada em analogia à “visão do todo” atribuída às divindades. A presença da estátua de Buda, única alteridade visível em todo o estudo, aparece como um duplo do bailarino, um dos múltiplos virtuais que se contemplam de um ponto de vista interior-exterior.
Nesta seqüência, ainda, Deren manipula o ritmo dos movimentos, com a alteração da quantidade de quadros por segundo capturados pela câmera. Esse jogo fala do que se passa no espaço do corpo em termos temporais. Utilizando um recurso que é próprio da arte do vídeo, Deren obtém um resultado eloqüente sobre a arte da dança.
Assim se formam essas unidades de espaço-tempo que caracterizam o movimento do bailarino. Não evoluindo no espaço comum, o seu tempo transforma o tempo objetivo dos relógios.
(...) O acontecimento, na dança, quer se trate de uma narrativa ou de uma dança abstrata, refere-se às transformações de regime do escoamento da energia, porque esta transformação de energia marca a passagem para um outro nível de sentido. O acontecimento é real, corporal, modificando a própria duração dos gestos do bailarino. (GIL, 2004, p. 54)
A série de “batidas de cabeça” altera a percepção da passagem do tempo devido ao poder das repetições. Embora a ação seja a mesma, nós somos diferentes a cada vez que a presenciamos, e o fato de presenciarmos a mesma coisa de novo estando em um novo estado distorce a nossa percepção temporal. Acrescente-se a isso a vertigem proveniente da sensação de giro, e fica claro o sentido da modificação da relação de frames por segundo nessa imagem específica.
A quarta idéia experimentada é considerada a maior das realizações deste estudo. Não gratuitamente, foi escolhido para encerrar filme o tipo de movimento geralmente tido como o mais virtuosístico em dança: o salto. O bailarino executa um salto do tipo jeté (lançamento no espaço com impulso partindo de uma perna e chegando sobre a outra), que é filmado de baixo, ângulo que favorece a sensação de elevação. Na verdade, foram realizadas várias tomadas que são sobrepostas, em câmara lenta, resultando em um salto que se prolonga no espaço e que, do ponto de vista real da dança, seria de dificílima execução, pois o corpo do bailarino assume diferentes posições enquanto está no ar. Ele inicia lançando os dois braços à frente, com a cabeça pendida para trás, e passa-os pelo alto até abrir nas laterais (2ª posição). Ao mesmo tempo em que esse port-de-bras é executado, a imagem resultante sugere que o bailarino, tendo saltado para a frente, teria trocado o corpo para uma direção lateral no ar (fouetté), pousando, após esse feito fenomenal, em uma sólida, tranqüila e bem-acabada segunda posição en dehors.
Esse salto absurdo é o encerramento do discurso experimental de Maya Deren sobre a dança. Observando, porém, as considerações tecidas por Gil acerca do espaço do corpo, o que parecia mero delírio imagético da diretora revela-se como tradução visual, realizada com genialidade, de um conceito filosófico em dança. Gil afirma que o próprio corpo, secretando seu interior para o exterior, torna-se espaço enquanto dança:
O bailarino não atravessa o espaço do corpo como atravessaria uma distância objetiva, num tempo cronológico dado. Produz ao dançar unidades de espaço-tempo singulares e indissolúveis que transmitem toda a sua força de verdade a metáforas como “uma lentidão dilatada”, ou “o alargamento brusco do espaço” que descrevem certos gestos do bailarino. (2004, p. 54-55)
Em seu pouso final, o bailarino chega a um “equilíbrio de luxo ”. Seu corpo transmite a sensação de amplitude, utilizando uma posição ereta e lateralmente alargada para ilustrar o espaço do corpo. A 3ª dimensão, da profundidade, é conferida nessa tomada pela escolha do espaço exterior, aberto e elevado. A mensagem final mostra um corpo que se percebe superior e dilatado ao realizar o seu encontro com a dança.
Enfim...
Apesar do texto de Gil só ter surgido em 2002, pode-se encontrar uma impressionante aproximação entre as suas proposições e as imagens criadas por Maya Deren. Alguns trechos do “Corpo Paradoxal” parecem ter inspirado diretamente a montagem de “A study...”. Descartando essa hipótese, de cronologia impossível, é necessário admitir que a combinação conhecimentos sobre cinema e dança realizada por Deren resultou em um estudo brilhante. Através da mídia filmada, esta pioneira conseguiu fazer uma exposição filosófica da dança. A hibridação entre as artes da dança e do vídeo não poderia ter sido mais bem inaugurada.
Referências bibliográficas:
BARBA, Eugenio, and SAVARESE, Nicola. A dictionary of theatre anthropology. London: Routledge, 2006. 2nd. ed.
GIL, José. Movimento Total. São Paulo: Iluminuras, 2004.
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