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Tuesday, July 08, 2008

9 páginas manuscritas

Texto escrito ontem à noite, 7/7/2008

Acabo de chegar do cinema. Assisti O Sol (Alexandre Sokúrov, Rússia, filme de 2005), sobre o imperador do Japão em 1945.
Acho que esse foi um ótimo filme, porque deixei o cinema conservando o ritmo, o tempo e as cores do filme. Respirando calculadamente, andei devagar todo o percurso do cine até a minha casa, nesta noite fresca, ou quase fria, tratando-se de Rio de Janeiro.
Acho que bons filmes ficam na pessoa assim; permanecem. Percebi que, ao sair do cinema, tudo estava um pouco diferente. Acho que é isso que busco em uma obra, uma obra de assistir, e os filmes e certos espetáculos têm isso, porque eles trabalham com o tempo, e dessa forma eles têm a oportunidade de inscrever um afeto, um estado de ser que perpassa a vida do espectador por algum momento. E se aloja lá, entre as experiências, ou na memória... mas eles existem e se relacionam com a pessoa, e para a pessoa que busca isso, é importante.
Tanto esse clima permaneceu comigo que, ao chegar, não quis deixar desfazer a atmosfera; este estar em si mesmo tão quieto e tranquilo que veio comigo, e não fiz o que rotineiramente faria apesar de ter pensado em fazê-lo. Desliguei o computador, após ter rapidamente verificado que o vídeo que passou tantas horas tentando ser incluído no You Tube finalmente terminou o uploading... mas foi rejeitado, por ultrapassar o tempo permitido. Tive o tempo de ver isso, mas não estressar, não perder a vontade de posteriormente refazer o corte para dividir em mais partes, e o que é mais importante, de desligar.
Pensava em dar só um descanso pro computador e voltar a ligar depois de um tempo... mas desisti.
Preparei meu chá e voltei ao quarto, já iluminado com a pequena luz da minha luminária, que eu gosto de pequenas luzes indiretas e ambientes semi-obscuros para ficar à noite. De maneira alguma desejei então voltar a habitar o mundo distrativo da Internet. Essa sensação forte e calma de mim mesma estava muito boa, e resolvi então anotar tudo o que estava pensando em anotar, na caneta, no papel, tomando meu chá de jasmim e iluminada apenas por essa luz, nem tão poética por ser uma luz branca, mas a melhor de que dispunha no momento.
E me incomodou a consciência de que não tenho um lugar confortável para sentar; de que não tenho tido um lugar confortável para sentar faz mais de um ano já, desde que cheguei aqui, bem como ontem tinha me dado conta de que não tenho tido um lugar confortável para deitar, mas sempre camas ruins: colchão muito fino; no chão; sofá meio quebrado e torto; colchão de madeira que parece uma cama de faquir.
Meu corpo não encontrou um lugar neste lugar, e aí está um dos fatores que eu não tinha ainda ligado ao meu desconforto geral de estar morando aqui no Rio. Cadeiras quebradas, camas sucatas, nenhuma poltrona ou sofá para acomodar e assentar o corpo... isso é mau, e sentei-me no chão apoiada nuns travesseiros e com as costas contra a cama. Foi o melhor que eu pude resolver...
...para escrever, e escrever sobre esse filme, que teve ese poder de me inundar com esse sentimento, e para escrever também sobre essas memórias corporais que me vieram à tona e que se fizeram claras, e para escrever ainda de certa forma sobre essas outras impresões dessa minha vida aqui; uma ilha tão diferente no curso até hoje da minha existência... desde que nasci Stela, pelo menos; desde o que eu sei.
E me dei conta também que não me agradam eses ruídos tantos dos outros moradores deste prédio que me invadem, porque não tenho como fechar a audição. De como eu detesto esses pedaços dessas vidas deles que me chegam: as discussões em família, os filmes e programas de televisão, as conversas telefônicas, as músicas, as visitas ruidosas, as portas que batem, os joguinhos eletrônicos, a cadela que grita, os banhos, o nariz todo dia assoado ruidosamente, a água da privada que é acionada. as batidas e outros movimentos indistintos que ocorrem mais ocasionalmente. Nomes de pessoas que eu não conheço, despertadores que soam, telefones e bipes, campainhas e interfones que tocam, sons de chat no MSN. As frituras que são feitas e que, além de soar, cheiram; as crianças que choram e que são repreendidas. Parecem todos selvagens; as vidas que proporcionam esses sons soam toscas,banais, popularescas, grotescas.
Consigo me isolar desses ruídos, relevá-los? Muitas vezes; é a luta pela indiferença que cuidadosamente cultivamos nestas grandes cidades, nestes prédios assim. Nestes aglomerados humanos a única saída é a indiferença, o isolamento, a construção de uma barreira na compaixão e na empatia que fariam parte de seres humanos mais naturais, que vivessem em condições mais adequadas de territórios ou espaços onde perceber a si mesmos, sem toda essa invasão e moléstia que a interferência de várias vidas não-relacionadas e não-afinizadas propiciam.
Mas volto ao filme, que foi a mola disso tudo.
Critico apenas um excesso de estereótipo dado aos soldados americanos; pareceu maliciosamente tendencioso o uso exagerado de slangs e de uma visão demasiado forçada do americano típico do sitcom; aquele cara vazio, jocoso, que faz piadinhas muito rasas sobre tudo, incapaz de entender ou respeitar uma outra cultura. É claro que há isso entre eles, mas não em todos nem no mesmo grau; esse exagero contrastou demais no filme por ser tão diferente do brilhantismo como foi apresentado o clima de cerimônia e ponderação dos personagens japoneses.
Descontado isso, o filme é lindo e o seu tempo lento é perfeito e necessário para trazer o entendimento da vida desse imperador e do impacto dessa guerra mundial, não sobre o povo, naquelas imagens já tão reproduzidas da destruição e da miséria, mas sobre o maior representante político e cultural do Japão.
A cor de todo o filme, beirando sempre uma tonalidade de sépia, é coerente e também tranquila, sem deixar de ser monótona.
O som chama a atenção de maneira fascinante. Há pouca música, geralmente muito baixa; ela se intensifica apenas em um momento chave no ponto mais climático tendo um papel importante na virada psicológica do imperador. O que mais chama a atenção no som do filme todo, porém, são os ruídos ambientes: sutis paisagens sonoras de cada local, que habitam, que preenchem mesmo os supostos tempos mortos, em que se espera alguma coisa acontecer, no seu tempo cronológico de acontecimento, e não num tempo diegético, de montagem, de edição. O percurso, lento e rígido, do imperador até alguma porta; o tempo de organizar os pensamentos; o tempo de falar, de abotoar uma camisa, de fazer uma mesura com o tronco, de sentar. São intensificados esses tempos com ruídos do relógio, de algum aparato de comunicação que vem de outra sala, de uma ave rara que habita os jardins e que grita do lado de fora, de uma sirene que chega de muito distante e uma variedade de outros pequenos ruídos que constróem a cena tanto quanto as imagens. Uma cena que não tem pudor de querer ser tão realisticamente ruidosa e tão demorada quanto as coisas realmente são, sem pressa de avançar a história, mas ambientando. E tanto ambientando que nos faz mergulhar nessa determinada realidade das vidas mostradas por esses personagens.
O filme se dá ainda o tempo de passar por outras coisas que não têm função narrativa, mas descritiva da vida e dos valores de um imperador do Japão. As pesquisas científicas, a conversa com o visitante sobre a aurora boreal, a gravura que ele observa e o poema que escreve no seu tempo para refletir ou escrever, compromisso da agenda imperial cumprido disciplinadamente.
O conflito maior não é a guerra, e diria que nem ainda o contraste entre as culturas americana e japonesa que se confrontam. O maior conflito estabelecido é o do homem, esse imperador, que para os japoneses não é humano, nem assim pode ser considerado, mas uma criatura divina, um descendente do sol. E éssa questão que ele traz consigo, e que a tradição é tirana em conservar, que se trona o grande tema do filme e o ponto de vista eleito pelo cineasta para apresentar uma figura de poder da História. Esse ponto escolhido, que parece bastante difícil como sustentáculo para uma obra cinematográfica, foi cultivado e realizado com bom gosto, inteligência e um trabalho apurado de controle do tempo.
Claro que o filme tem também suas metáforas; ele não as nega. Uma interessante sequência de sonho ou do espaço da imaginação do imperador transforma peixes em bombas. A união do imperador com o comandante americano por uma extensão de suas bocas, concretizada nos charutos que se acendem, simboliza uma cumplicidade como que selada com um beijo...
Há ainda as sutis pinceladas de um humor patético, como o imperador fazendo pose de Charles Chaplin sem saber exatamente quem era ele, e a desconfiança de um criado sobre um possível envenenamento das caixas de chocolates Hershy's presenteadas pelos americanos.
E há o retrato do lugar reservado à mulher nesse mundo de cultura tradicional japonesa, alta poítica e estado de guerra: incognitamente reservada, afastada, nula; alguma coisa que faz parte de outros momentos da vida e que se configura numa lembrança, numa menção á distância, que nada intervém nos assuntos e nos fatos. pois a absolutamente única presença feminina (à parte de algumas fotografias de atrizes americanas que recebem reprovação por seu atrevimento) é a imperatriz que surge apenas na ultima sequência do filme e que apenas é informada sobre as decisões que já foram tomadas. Ela é delicada reservada, amorosa e submissa.
Realmente, escolhido para ser a opção menos pior no folhetinho do cinema, este filme acabou se transformando em uma notável experiência. Estou feliz por uma série de circuntâncias de acasos e dúvidas terem me levado a encontrar com ele, e admito, principalmente, isto: estou feliz por ter sido essa uma experiência individual, de mim comigo, solitária, pois só assim pude viver plenamente (sem ter que quebrar o afeto pela necessidade de interagir com outra pessoa imediatamente após o filme) uma rica coleção de impressões estéticas, intelectuais e afetivas. Inesperadas.

3 comments:

Pedro Strack said...

Tu escreve bem heim Stela, muito bom o post, mas eu gostei dos selvagens. : )

stela menezes said...

Obrigada, Pedro!

Pedro Strack said...

De nada. : )

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O meu melhor papel nesta vida é o da aprendiz. Por isso o nome deste blog é apprenticeship, e provavelmente por isso gosto e quero fazer cada vez melhor o papel de professora. ..